«Apetece-me gritar de raiva para os criminosos deste país»

Viveram-se horas de angústia e pânico em Famalicão da Serra, no concelho da Guarda, na última segunda-feira com o aproximar das chamas vindas de Vale de Amoreira, do outro lado da serra.
Encaixado num vale, o núcleo urbano da aldeia ficou praticamente encurralado, mas acabou por escapar à fúria e devastação do fogo, que progrediu com intensidade pelas duas encostas sobranceiras tragando quintas, propriedades agrícolas, vinhas, olivais e soutos. Perante a ameaça do incêndio, a Câmara da Guarda avançou com a evacuação de pessoas, tendo mobilizado para o local dezenas de carrinhas de transporte, enquanto outras optaram por sair à vista do cenário dantesco que subia de Valhelhas para Famalicão. No dia seguinte, com a aldeia ainda em estado de choque com o sucedido na véspera e cansada da luta para salvar bens e animais, O INTERIOR foi encontrar António Rodrigues a apagar um foco numa pequena ponte de madeira, sobre a ribeira – seca –, à entrada de uma quinta. «Estou profundamente abalado com o que estou a ver. Apetece-me gritar de raiva para os criminosos deste país», começa por dizer este famalicense, residente na Covilhã.
«Acompanhei a situação pela televisão, não parava de pensar nos meus amigos, nas gentes de Famalicão, da minha terra, estava angustiado», admite, ficando constrangido pelo cenário «desolador» que foi encontrar. «O nosso vale, que era todo verde, está completamento queimado. Não sei o que se passa neste país, no mundo, mas o homem é muito cruel», atira António Rodrigues, enquanto entra no carro a caminho do centro da aldeia. Já António Venâncio, natural de Famalicão mas residente na Guarda, chegou a deslocar-se à aldeia na noite de segunda-feira para levar a mãe. «Quando cheguei já tinha partido para a Guarda com um casal amigo. O que posso dizer é que foi uma noite horrível, isto foi um autêntico mar de chamas que atravessou este vale, era impressionante», recorda. O mediador de seguros adianta que o soito da família ardeu tal como uma quinta: «Só se salvou a casa, os terrenos e árvores ardeu tudo, mas não foram só os nossos bens, foram os de muita gente de Famalicão», alerta, considerando ter sido «um milagre» a aldeia ter sido poupada
«A Câmara da Guarda deve criar um acesso no cimo do povo, onde as bocas de incêndio não tinham água, víamos mangueiras pelo chão, foi muito aflitivo», garante António Venâncio. Em Valhelhas, aldeia vizinha situada junto ao Zêzere, admite-se ter sido «uma sorte ninguém morrer e as casas estarem praticamente todas intactas». Quem o diz é Rui Rocha, que já presenciou outros incêndios, mas nenhum «com a força deste». Por sua vez, a esposa Estela Rocha não evitou chorar ao contar que um tio ficou sem a casa. «Era de férias, mas era a casinha dele, onde tinha as memórias da esposa e perdeu tudo, assim como o trator», lamentou. Famalicão e Valhelhas ficaram sem comunicações na segunda e terça-feira, estando a ser repostas gradualmente pelas empresas de telecomunicações. Houve também falta de água, que regressou às casas na terça-feira.