Nas duas primeiras décadas deste século foram muitos os acontecimentos históricos que mudaram o nosso entendimento do mundo. Só para citar os mais importantes: em 2001, ataque terrorista às Torres Gémeas; em 2002, o Euro entra em circulação; em 2004, nasce o Facebook; 2008, início da recessão económica global e dos anos da Troika em Portugal; em 2010, acontece a Primavera Árabe; em 2011, início da guerra da Síria; em 2013, a eleição do Papa Francisco, primeiro Papa da América Latina; em 2016, Donald Trump é eleito Presidente dos EUA; em 2017, início do movimento #metoo; em 2019, entra em cena a ativista Greta Thunberg pela defesa das questões ambientais; e em 2020, a pandemia do novo coronavírus. Foram acontecimentos transformadores que mudaram a nossa conceção de vida social, política, cultural e económica à escala global.
Nunca como nestes primeiros 21 anos do século XXI estivemos tão dominados pela tecnologia, tão interligados pelas múltiplas ferramentas digitais de comunicação, tão preocupados em discutir matérias político-sociais fraturantes como a igualdade de género, a eutanásia, as alterações climáticas, a violência doméstica, a ascensão da extrema-direita ou o assédio moral e sexual. São tempos paradoxais e complexos que exigem redobrada reflexão sobre quais os valores que queremos para a nossa civilização. São tempos supostamente modernos e democráticos em que tudo está ao alcance de um clique no teclado do computador, mas que não escondem tremendas assimetrias entre pobres e ricos, cavando um fosso profundo nas desigualdades sociais e económicas nos povos. Ao mesmo tempo, vivemos uma era em que no Japão, por força da elevadíssima taxa de suicídios entre jovens e velhos, o Governo cria um Ministério da Solidão. O Japão, esse país tão evoluído tecnologicamente, mas que, humanamente, é devastado pelas desmesuradas exigências profissionais e pela solidão social e emocional da população, acentuadas dramaticamente pelos efeitos da pandemia.
Portugal, como de resto em todo o planeta, vive há um ano em estado angustiante de pandemia. Com Estado de Emergência atrás de Estado de Emergência, figura constitucional que muitos pensavam que nunca seria ativada no nosso tempo de vida, mas que tem sido quase omnipresente. Liberdades individuais e coletivas fortemente restringidas como nunca pensaríamos ser possível. A socialização, sentar num banco de jardim ou um simples abraço serem proibidos por força de lei do Estado. A chamada “cultura do cancelamento” banalizou-se e provocou milhões de desempregados em todas as áreas de atividade humana. Esventrou a economia por dentro como nunca imaginámos ser possível. Nem Aldous Huxley ou George Orwell imaginaram tais consequências de um estado totalitário nas suas obras literárias. Ou por outra, Orwell escreveu no seu “1984” a existência de uma «polícia do pensamento» com o intuito de manipular a vontade humana. E a verdade é que não deveremos andar muito longe desta possibilidade real, com a ajuda de ferramentas tecnológicas de vigilância massiva aliadas de inteligência artificial intrusiva. De resto, Edward Snowden avisou o mundo que os governos estão a aproveitar esta pandemia para implementar uma sociedade distópica assente numa «arquitetura da opressão». O que é real ou ficção num mundo polvilhado de “fake news”?
Creio sinceramente que ainda só vamos a meio desta tempestade pandémica. Mas o que já sofremos a nível pessoal, profissional, social, cultural e económico, é suficientemente penoso e nefasto para perceber que estamos a um passo de uma nova ordem mundial. Ou de uma profunda mudança de paradigma civilizacional, nos quais valores como liberdade e democracia poderão ficar em causa. E nesta nova lógica histórica, muita coisa negativa pode advir na fase pós-pandémica. Mas acreditemos que a “cultura do cancelamento e da negatividade” dê lugar à “cultura do humanismo e da felicidade”. E para consumar esta premissa, o jornalismo sério e comprometido com a verdade histórica e entendido como instrumento de intervenção social, tem um papel preponderante como garante da democracia. Longa vida, pois, ao jornal O INTERIOR.
* Diretor do Teatro Municipal da Guarda e antigo colaborador de O INTERIOR