Existimos agora e nada mais? Vivemos e não haverá nada depois? Inquieta-te saber que não há além? Incomoda-te o fim? Tens medo da morte? A vida é o tempo em que estamos aqui começando dependentes e migrando por uma jornada de adaptação, exposição a outros e a coisas e depois decadentes nas finitudes do corpo. Somos um corpo que se vai degradando após o auge, mas temos uma mente que nos sente intactos, plenos, iguais à infância. Há um dia que o espelho não mente e vemos o excesso, descobrimos o defeito, constatamos a deformidade. Temos a meio da jornada a ideia que não tem fim. Mais tarde temos a perceção da finitude e temos desejo da perpetuação, num filho, num neto. Alguém que prossiga a obra, guardador de memórias e de objetos. Nós ficamos na imensidão das coisas que armazenamos e colecionamos. Um dia, depois da nossa existência, isso pode ser um fardo. Arrumar as roupas que ficam. Que fazer aos livros? Que dizer das fotos? Não somos os faraós carregados de bens na hora da múmia. Muitos levamos a vida a comprar, a colecionar, a erigir mausoléus de sapatos, closets de vestidos de uma noite apenas, bibelots, abajures, inutilidades que nos fascinam. Arrecadar coisas. Viver arrecadando é um processo. Viver trazendo souvenirs. Enchendo os espaços de recordações. Memorizamos por futilidades que nos compraz, mais caras, mais baratas, irrecusáveis. Somos nós projetados em matéria que não se expressa. Esta matéria somos nós também. Os quadros, as loiças, as libras de ouro, as canetas extravagantes e caras somos também. Construímos o eu de acrescentos e pulverizamos a redondeza. Estas coisas custam a largar porque se tornam próteses, guardiões de histórias. Uns representam família, outros momentos insólitos. Existimos nestas coisas que ficam depois de nós. Não levamos nada e chegamos nus.
Vives enquanto duras
“Temos a meio da jornada a ideia que não tem fim. Mais tarde temos a perceção da finitude e temos desejo da perpetuação, num filho, num neto. Alguém que prossiga a obra, guardador de memórias e de objetos.”