Nestes dias, em que a pandemia parece ter virado o mundo de pernas para o ar, algo, nesse contrário, acaba por encaixar certas peças sem lugar definido na perspetiva anterior.
Os antipolíticos só fazem pausa no ataque a qualquer político que mexa para atacar os funcionários públicos. O que ainda nenhum me conseguiu explicar é como é que nos havíamos de governar sem uns e sem outros. Mesmo decidida a não lhes dar mais credibilidade do que a que efetivamente têm, não quero deixar de lhes expressar a minha perplexidade por, simultaneamente, revelarem ser contra a Democracia e contra o Estado Novo. Não sei se é só impressão minha, mas não se vos assoma estranho que alguém se revele saudoso do antigo regime político, em que a Assembleia era preenchida com um punhado de funcionários escolhidos a dedo, depois de assumir ser visceralmente contra o funcionalismo e os funcionários públicos? Mais estranho fica, ao lembrarmos que assumem ser igualmente contra os políticos, em particular contra os deputados eleitos para os representar. Afinal como é que, na opinião destes avessos à Democracia, deveria ser constituída a Assembleia? Será que simplesmente a dispensavam? Mas, se sem Assembleia não há Democracia e sem Democracia não havia SNS, como é que depois haviam de criticar o atendimento antigo e aplaudir a resposta atual? Felizmente para todos, incluindo estes indecisos do regime político, vivemos em Democracia e qualquer um é livre de se expressar, de se tratar no SNS, de eleger os preferidos. Razões mais do que suficientes para, ainda que com as adequações que o momento impõe, se comemorar o dia em que essa liberdade foi conquistada. Só quem não está interessado na defesa da liberdade é que insistirá em que não se comemore a data, porque sem memória nada existe, e ainda não perderam a esperança de que o 25 de Abril seja esquecido e, com ele, os direitos, liberdades e garantias que alcançámos.
Paradoxalmente, pelo menos na gramática da maioria dos que hesitam entre defender num regime a persistência de aspetos ideológicos de outro, mas que depois de observar a leveza com que os conservadores deitam qualquer coisa para o lixo, em vez de repará-la ou reutilizá-la, precisamente para a conservar, não é isso que mais nos espanta. O que mais espanta é a recorrente incapacidade de assumir qualquer das posições que, consoante lhe convenha, vai adotando. Reivindica, muito bem, excelência nos serviços públicos enquanto vai reclamando, ainda melhor, da carga fiscal, mas nunca explica como é que conjugaria as duas. Defende menos Estado e mais iniciativa privada, mas nunca prescinde de apoios e subsídios estatais. E por aí fora, mais se assemelhando a adolescentes mimados, a quem nem passa pela cabeça viver fora da alçada dos pais com quem está sempre a refilar, do que a pessoas autónomas e independentes. Por si só, estas pessoas que, maioritariamente, nem são más pessoas, acabam por não ser a maior ameaça para os valores de Abril. Na minha perspetiva, a maior ameaça é o esforço dos que aproveitam qualquer oportunidade para, começando por apagar a memória, os convencer de que a génese de todos os problemas que a atormenta está no 25 de Abril, sendo precisamente o contrário.