Vindimário e Brumário

“Os críticos da democracia representativa defendem que o bem comum é objectivo e só é acessível aos mais aptos.”

1. Stendhal, nas suas “Memórias sobre Napoleão”, a certa altura, dá conta do feliz encontro entre as tropas francesas e a cidade de Milão. Os exércitos republicanos eram comandados pelo jovem corso, recém-promovido a general de divisão durante a sua campanha vitoriosa e prestigiante em Itália. Napoleão foi recebido em júbilo, por uma cidade requintada e poderosa, como libertador do jugo austríaco. Num tempo de efervescência romântica – entre jovens oficiais do exército republicano e damas milanesas de fino porte, cuja beleza não desmerecia as maneiras – não é de estranhar a quantidade de episódios sentimentais ocorridos durante a permanência dos libertadores na capital da Lombardia. Mas Stendhal faz notar algo que deixou os franceses espantados. Sobretudo porque a maioria vinha da província, desconhecendo a coqueteria parisiense. Refiro-me ao “Cavalier Servant”, uma instituição modelar na Itália daquela época. Tratava-se de uma espécie de “cavalheiro de companhia”, para senhoras casadas da aristocracia e alta burguesia. Nomeado pelas próprias, com a bênção do marido e ampla tolerância da sociedade. Ou seja, um confidente, acompanhante, entreteneur e, last but not least, amante. Eis um costume sábio e a contento de todas partes: para o marido, que prevenia surpresas desagradáveis e poderá, por sua vez, ser o servidor de outra dama; para a mulher, que assim materializa os seus anseios romanescos e escapa ao perigoso tédio conjugal; e para o cavalier, que conta com os favores femininos sem os respectivos encargos. E assim se salva a instituição conjugal. Tudo isto, numa outra perspectiva, acaba por impor um travão à vaidade masculina. Só espero que o bom senso reponha em uso tão gracioso costume.
2. O bem comum é uma realidade objectiva ou subjectiva? É cognoscível por todos, ou só por alguns? Os críticos da democracia representativa defendem que o bem comum é objectivo e só é acessível aos mais aptos. No modelo liberal da democracia, é apontado o desincentivo à participação política activa, por via da irresponsabilização e a falta de accountability, como os maiores efeitos perversos da delegação de poderes. Mas se o bem comum é uma grandeza plural, subjectiva, que resulta de um consenso, também pode conduzir ao conflito crónico? O que fazer, se impera a fragmentação, ou se o bem comum é simplesmente definido pelas maiorias? Em política, as opiniões pessoais valem pouco. Os taxistas, os reformados e os que mandam bitaites por tudo e por nada, nunca viram ou verão as suas preces recompensadas. A acção política baseia-se na necessidade e na competição entre interesses. Nas reacções a rupturas e desequilíbrios provocados por determinados actores ou subsistemas, com prejuízo dos outros. Nas variantes de uma desigual repartição dos recursos, para as quais há sempre competição entre as partes interessadas. Tudo o mais é coreografia e ‘robustos’ entusiasmos, como diria Eça.
3. A ortodoxia dita progressista sempre quis chamar a si a intelligentzia, infiltrando-a e colocando-a ao serviço de uma agenda política. Como? Criando uma narrativa épica de resistência, que excluía quem não alinhasse no coro. O Luiz Pacheco contou essa história. Será que, actualmente, algo mudou? Só aparentemente. As vanguardas iluminadas, artísticas ou não, são o último bastião totalitário. Onde mesmo o culto da personalidade persiste sem problemas. E não há nada que irrite tanto um iluminado do que ver alguém que pensa, que cria, que se libertou de certas amarras, sem precisar de prestar tributo às capelinhas autorizadas.
4. Perguntaram-me porque sou tão convicto na defesa das virtudes do mercado livre. Respondo com um exemplo. No início da sua carreira, que incluiu fazer poses para fotonovelas romanescas, Sofia Loren viu-se confrontada com Gina Lolobrigida, a diva erótica do cinema italiano. Ora, ao contrário do que se diz, o tamanho conta, sobretudo em atributos naturais. A feroz competição entre ambas teve um momento alto: a chamada guerra dos decotes. Se Gina aparecia com um mais ousado, Sofia descia uns centímetros. Uma jogada que não ficava sem resposta, e sem umas costuras a menos. Para gáudio dos papparazzi e grande parte da população masculina do mundo ocidental. Imaginemos agora que, em vez da livre concorrência, com visíveis benefícios para todos, existia uma comissão estatal que determinava uma medida única para o decote. Provavelmente com mais pano…
5. No desfazer breve da mochila, paira ainda o sabor da água, do sândalo, dos frutos tardios. O nome da tua rua ocultado na noite. As sombras que nos observam, nos tocam e nos fogem. A rosa cintilante. O livro que se despede de mim antes de chegar ao final. As nuvens, que variam como promessas. O ocioso labirinto que as tuas mãos teceram.

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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