Ventoso

“Pelo contrário, hoje pratica-se o narcisismo social como forma de auto legitimação enquanto “elite”. “

1. Na Guarda, chegou a haver elites. Não porque se reivindicassem como tal, mas precisamente porque não o faziam. Ao tempo de uma célebre foto, que regista a passagem de Humberto Delgado pela Guarda, durante a sua campanha presidencial, em 1958, havia algo como elites. Não porque quisessem protagonismo a todo o custo, usassem a complacência e o amadorismo como moeda de troca, ou confundissem conhecimento com erudição de lapela. Não, isso é recente. Nessa altura, importava muito o desempenho cívico, a virtude discreta e a ilustração sem aparato. Por ter participado neste desfile, a minha mãe esteve quase a ser expulsa da Escola do Magistério, que então frequentava. Mesmo depois do 25 de Abril, até ao final do século, havia algumas referências cívicas na Guarda, digamos, incontornáveis. Não que a notoriedade seja o mesmo que pertença a uma elite. Isso só vem depois, se vier. Não é um efeito necessário, mas casual. Pelo contrário, hoje pratica-se o narcisismo social como forma de auto legitimação enquanto “elite”. Seja lá isso o que for. Vejo que, em muitos casos que tenho acompanhado, confunde-se protagonismo com notoriedade. Nem que para isso se procure chocar a paróquia, “epater les Bourgeois”. Como se, num mundo pós-moderno, alguém ficasse chocado com o que quer que seja! É o efeito bolha das redes sociais transposto para o espaço público. O plano dessas pessoas é simples. Há que exibir conhecimento, “inteligência”, talento, irreverência qb, atributos físicos, desportivos, etc. Circular e fazer-se notar onde for preciso, sem qualquer rebuço de consciência. Com isso, criam uma visibilidade multiusos. Um mediatismo que se alimenta da vaidade. A notoriedade é opcional. Basta desmontar o provincianismo esfuziante que as faz correr para as luzes da ribalta. Talvez por isso, falar de política na Guarda é discutir lugares, antecipar promoções, distribuir lealdades, monitorizar ambições. Na cidade onde vivo, triunfou o individualismo assistencializado. Se alguém ousa falar mesmo de política é visto como um maluquinho, ou uma ameaça. E se alguém faz as perguntas básicas que se fazem quando se fala de política é tratado como um pária. Porque quem faz essas perguntas tem fé na sua dúvida. E se avança com alguma resposta é porque duvida da sua fé. O suficiente para fazer logo outra pergunta.
2. Dar o nosso melhor em tudo? Absolutamente. Ou pelo menos, tentar. E mesmo quando não tentamos sentir que o resultado seria o mesmo. Mas há um departamento onde mesmo as excepções contam e um quilo de remorso pesa uma tonelada: o amor. Neste caso, quando os nossos esforços são correspondidos, nem nos lembramos se o que fizemos antes foi suficiente. Se calhar, até nem tivemos que fazer nada por aí além. Mas a questão surge quando as coisas não correm bem. Acalmar o tumulto que se segue exige a intervenção de uma consciência tranquila. Pois a sensação de termos feito o nosso melhor significa que esgotámos o que estava ao nosso alcance para cumprir a maior das ambições.
3. Ao rever o filme “A Laranja Mecânica”, de Kubrick, percebi uma coisa fundamental. O filme era tão incómodo na altura como hoje. Ou seja, como que antecipou as razões da sua actualidade. E se então chocou foi mais pelo aparente culto da amoralidade, pois as guerras de libertação nos costumes e na moral já tinham sido ganhas pelo novo tempo. Percebi agora que a questão central do filme não é a violência por si só, mas o seu controlo pelo poder. E os sentimentos postiços ao seu serviço. E a busca da vitimização pelos novos activistas donos da virtude. E tanto assim é que o neopuritanismo histérico da correcção política a que hoje assistimos recoloca este filme, enquanto alegoria cruel das ameaças à liberdade, num estatuto, digamos, profético.
4. Ao que tudo indica, Edite Estrela já não ver indicada para ser a próxima Presidente da AR. Ainda assim, cheguei a fantasiar sobre o que se seguiria, caso fosse nomeada. Nas suas alocuções, os deputados iriam ser continuamente interrompidos pela antiga filóloga e linguista, seja porque não declinaram correctamente o verbo X, ou usaram um neologismo irregular, ou não houve correspondência entre sujeito e predicado, ou o advérbio Y estava incorrecto, ou o sufixo W não era apropriado, ou a pronúncia era desviante em relação à norma, ou o regionalismo Z não era aceitável, etc… Enfim, valeria a pena seguir o canal “Parlamento”…

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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