Ventoso

1. O país está ansioso por um caso confirmado de um cidadão nacional infectado com o Coronavírus. Os media andam numa excitação de odaliscas antes da visita do sultão. As autoridades sanitárias multiplicam os avisos mais disparatados da História, desde que Maria Antonieta mandou o povo esfomeado de Paris comer brioches. A ministra da Saúde sugeriu aos regressados da China ou de Itália que se isolem. E aconselhou os cidadãos em geral que se abstivessem do promíscuo ósculo. Um verdadeiro festim pícaro. Ocorre-me “O Bem Amado”, aquela deliciosa telenovela dos idos de oitenta. Os habitantes de Sucupira recusavam-se a morrer e o prefeito Teodorico não conseguia inaugurar o “seu” cemitério. Bem sei que uma epidemia desta dimensão não é para graças. Ainda assim, espera-se que um país tão engraçado mantenha os vírus à distância.

2. O pavimento interior da Torre dos Ferreiros está a ser substituído, no âmbito das obras de requalificação em curso. Aguardo uma opinião séria e qualificada sobre este caso. E os guardenses anseiam por um esclarecimento público da parte das entidades responsáveis. A calçada foi removida e, em seu lugar, foi colocado um lajedo em tudo semelhante ao do Praça Velha. A solução não me parece consentânea com as fontes históricas, nem com outras intervenções em locais classificados similares. A Torre é o único sobrevivente dos três torreões fortificados que integravam as muralhas da cidade, sendo também suas portas, embora não únicas. A Torre de Menagem, como o nome indica, tinha outras funções. O que tenho lido, até agora, resume-se ao habitual rol de indignações das caixas de comentários. Que me parecem justas. Porque o monumento não pode ser tratado assim. Mas cuja receita é a mesma de sempre: teclados inflamados, apontar culpados virtuais, bairrismo exacerbado, “eu é que sei!”, partidarite aguda, etc. Vejamos. A solução é inestética, perigosa, disfuncional? Sem dúvida. Há que substituir o pavimento? Sim. Como, repôr o anterior? Não. No meu entender, faz mais sentido prolongar o tipo de calcetamento actual da Rua da Torre. Seria uma solução prática, moderna sem ser disruptiva e causaria boa drenagem. E reforçava a homogeneidade do conjunto, pois essa rua é a via natural de acesso a uma das antigas portas da cidade.

3. Ele sempre escreveu cartas de amor. Todas elas ridículas, já se vê. Só mudou o modo com que se via a si próprio a escrevê-las: um lírico tempestuoso, esforçado e caligráfico na adolescência; um lírico tempestuoso, esforçado, irónico e dactilográfico na juventude; um lírico tempestuoso, esforçado, irónico, expiador sentimental e dactilográfico electrónico na idade adulta; um lírico tempestuoso, esforçado, irónico, expiador sentimental, edulcorante e cibernauta na meia idade. É certo que houve uma evolução. Mas em crescendo. O crescimento acontece quando retiramos, não quando enchemos. Claro que os resultados de tamanhas efusões amoráveis foram quase nulos. Só conseguiram despertar pouco mais do que uma genuína piedade e uma vaga curiosidade. Até que, um dia, escreveu mais uma carta de amor. Ridícula, como todas. Quando ia enviá-la, reparou que, no essencial, era igual a outra missiva que tinha enviado há 15 anos. Após um momento de hesitação, decidiu parar. Guardar a mensagem para si. E dizer de viva voz o que lá não estava.
4. Recebi um convite, endereçado por uma instituição da cidade onde vivo, para participar numa sessão organizada no Dia Mundial da Poesia. Intitula-se “Eu hei-de salvar os tempos”. E como se opera tamanho propósito redentor? Mediante um “encontro de poetas e de receitas para salvar a humanidade” (juro que é verdade). Ou seja, um concílio de super-heróis, unidos num “combate poético” em torno do “ambiente”. Para tal, pede-se aos eco vates que venham munidos de dois poeminhas alusivos a “temas ambientais”, mui adequados a tal refrega. Confesso que, desde o tempo em que, na escola primária, a professora mandava fazer uma redacção sobre “a vida no campo”, não tinha o ensejo de experimentar tanta excitação criativa. Pois que, nos acampamentos de escuteiros, ao menos aprendia-se algo útil. É claro que confirmei a minha presença. Salientando, no entanto, que iria disfarçado do super-herói mais adequado à ocasião: o homem invisível.

5. Não há verbo para Eutanásia. Há voz passiva e objecto. Verbo só para suicídio. E um enorme pronome. Racismo não tem verbo. Nem complemento. Mas tem o objecto a reboque do sujeito. Abusa dos substantivos, mas reprime adjectivos. Racialismo tem só objecto. Diluído em advérbios. Muitos pronomes. Abusa da ficção histórica e da mitologia. Das elipses. Faulkner percebeu-o melhor do que ninguém. Em “Yoknapatawpha”.

Sobre o autor

António Godinho Gil

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