Vamos Abranhos ao litoral?

Escrito por Fernando Pereira

“Fazem-se as cadeiras em função dos rabos de quem usa argumentos para se lá sentar, nem sempre os mais ortodoxos, e frequentemente a cadeira é feita para e à medida de gente que se encostou a quem tenha força suficiente para os lá colocar. “

«Infalível, também, era o Doutor, aquele cavalheiro estimável, mas de aspeto lúgubre, que todos apenas conheciam por este nome: o Doutor.
Sempre vestido de preto, sempre de luvas, amarelo como uma cidra, persistia na sua mudez taciturna; porém, continuava a escutar com uma atenção intensa, a testa franzida, piscando vivamente os olhos, como num profundo trabalho cerebral.
Respeitador fervente das instituições, das personalidades oficiais, ninguém sabia ainda onde ele vivia, nem de que vivia: mas precipitava-se com tanta veneração (porque era homem de sociedade) a tomar as xícaras vazias das mãos das senhoras, dizia com tanta convicção, na sua voz cavernosa, “tem V. Exª carradas de razão”; que era geralmente considerado como um excelente moço».
Este é só um delicioso detalhe da farsa o “Conde de Abranhos”, que o escritor português Eça de Queiroz (1845-1900) fez sobre a sociedade do seu tempo no período conturbado da 1ª experiência constitucional portuguesa!
O “Conde de Abranhos” era a personagem típica do carreirismo, “carneirismo” e bajulice no seu pior, e infelizmente acontecendo em várias latitudes e na vivência quotidiana de sociedades que não passam de ter este “status”.
O Conde de Abranhos estudou na Universidade de Coimbra, onde começou por denunciar um colega, o que lhe permitiu passar a usufruir de favores dos seus superiores. Simultaneamente, envolve-se com a “criada”, que fica grávida e imediatamente abandonada, e o rapaz recém-nascido completamente esquecido. Vai para Lisboa, trabalho no escritório do causídico Vaz Correia, que o guinda a redator chefe do Jornal “Bandeira Nacional”.
Percorrendo os corredores do poder, casa-se com a filha do Desembargador Amado, Virgínia de seu nome, o que lhe assegura de imediato 10 mil cruzados de renda, e fundamentalmente abre-lhe as portas de S. Bento (Assembleia Nacional de Portugal). É eleito deputado por Freixo de Espada à Cinta, onde faz discursos, vazios de conteúdo, sobre a reforma das instituições, a política colonial e o caminho-de-ferro do leste. Como os tempos não corriam a favor da sua linha política, não faz disso um problema e passa-se com armas e bagagens para a oposição que, em troca, o coloca como um “cinzento” Ministro da Marinha, lugar que ocupa como “estátua” durante dois anos sem que alguém dê por ele.
Trouxe aqui o “Conde de Abranhos” porque ilustra o quotidiano do poder, dos títulos tantas vezes conseguidos à custa de coisa pouca ou coisa nenhuma, e da influência que certas criaturas têm nos corredores do mando sem que possuam qualquer tipo de competência, legitimidade académica e comprovada experiência na gestão de qualquer coisa pública.
Fazem-se as cadeiras em função dos rabos de quem usa argumentos para se lá sentar, nem sempre os mais ortodoxos, e frequentemente a cadeira é feita para e à medida de gente que se encostou a quem tenha força suficiente para os lá colocar. Temos que recuar ao império romano, onde, com toda a sua corrupção e nepotismo nas hierarquias do poder, havia um cuidado muito especial para se escolherem os rabos dos cavalos que equipavam as quadrigas por forma a não destabilizarem toda a carruagem nas lutas que se iam fazendo nos jogos, nas batalhas e no transporte de pessoas de elevada importância.
Acho que um exercício saudável seria o regresso aos clássicos, e já agora porque não voltarem-se a ler alguns vultos das letras que em português escreveram, e muito bem, e pegar num Eça de Queiroz, Olavo Bilac, Manuel Bandeira, Ramalho Ortigão, Guimarães Rosa, Camilo Castelo Branco, Fialho de Almeida, Mário de Andrade, Nelson Rodrigues, Jorge de Sena, Aquilino e tantos outros para que reaprendamos a escrever, e ver que a frase de Marx, do “Dezoito Brumário de Louis Bonaparte” (1852) – «A história repete-se, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa» – é de uma acuidade permanente no quotidiano vivível.
Aguardemos melhores dias!

Sobre o autor

Fernando Pereira

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