Antes de algumas das nossas vilas se terem transformado em aldeias e de algumas outras se terem transformado em cidades, as casas, rotas e tortas, de xisto e granito viviam prenhes de gente a quem os senhores da casa grande matavam a fome a troco de um dia de trabalho.
Cansadas, amontoadas e enregeladas, as pessoas das casas tortas e rotas deram em partir à procura de melhores vidas e as pessoas das casas grandes em definhar. Uma atrás de outra foram-se as casas rotas e tortas deixando cair e as casas grandes deixando desengonçar até não lhes restarem mais do que algumas paredes esfaceladas e os soalhos todos partidos. Depois de algumas das nossas vilas se terem transformado em aldeias e algumas outras em cidades, quando já não havia ninguém enregelado, amontoado e cansado em qualquer das casas, vieram arranjá-las. As portadas das janelas das casas sobressaem no granito remendado e brilham agora sobre as rendas da memória. As placas nas ombreiras das portas ostentam com orgulho as saudades de quem não viveu o suficiente para assistir ao renascer das velhas pedras, pequenas e tortas nas paredes das casas pequenas, grandes e polidas nas paredes das grandes.
As estradas de retorno não têm nada dos caminhos (que urge mapear) da partida, são direitinhas, largas e suaves. Boas de percorrer a cada fim-de-semana, festas e feriados pelos novos donos destas aldeias e vilas que não quiseram ser cidades. Não dependendo do que a terra e o seu senhor lhes dão, os herdeiros da desventura de seus avós não resistem ao “apelo das raízes”. A cada regresso limpam as casas de todo o pó e teias de aranha que o tempo em que permaneceram fechadas lhes foi adicionando, com a mesma paciência e carinho com que lhes coseram as pedras das paredes e as telhas dos telhados. Os mais criativos tentam inventar novos usos para velhos objetos e plantam flores nas pias que já foram dos porcos, os mais habilidosos recriam engenhos, sem saber ao certo para que servem. Uns e outros, sem se conhecer entre si, por falta de oportunidade, vão preenchendo assim o tempo da aldeia, que em nada se assemelha àquele a que estão habituados. Houvesse quem lhes ensinara para que servia a pedra funda que faz de vaso à porta, como funcionava a candeia pendurada na chaminé da lareira e outro proveito tirariam da conversa com o que das tradições, da cultura e das práticas ancestrais no território lhes coube em herança.
Claro que se houvesse quem lhes ensinara era sinal de alguém ter tido uma visão, estratégica e integrada, para a valorização do património natural e cultural desta Beira. Como não há, continuar-se-ão a cruzar apenas na estrada que os traz e, eventualmente, no corredor do Museu do Côa ou nas escadas da Sé. Já nas escadas da Torre dos Ferreiros, da Torre de Menagem, nos fornos comunitários ou nos “trilhos” do Noémi é muito improvável que tal venha a ocorrer. Cruzarem-se. O que nem é muito grave, porque também não consta que lá haja grande conversa. No caso das torres, talvez haja a dos cartazes. E a do granito, enquanto ninguém se lembrar de o forrar a azulejos, vá.
Valha-nos o S. Granito
“Depois de algumas das nossas vilas se terem transformado em aldeias e algumas outras em cidades, quando já não havia ninguém enregelado, amontoado e cansado em qualquer das casas, vieram arranjá-las. “