Uma prolongada agonia…

Escrito por Hélder Sequeira

«Hoje, o estado de abandono e degradação dos antigos pavilhões do Sanatório Sousa Martins não dignifica uma cidade que se quer afirmar pela história e anseia ser Capital Europeia da Cultura»

O dia 18 de maio de 1907 constituiu uma das mais imponentes jornadas festivas da Guarda, marcada por um expressivo envolvimento coletivo que importa recordar a propósito da passagem (nesta última terça-feira), do 114º aniversário da inauguração do Sanatório Sousa Martins.
Nesse longínquo dia de 1907 abriu-se um novo período da história citadina; se, por um lado, a Guarda ficou dotada com um moderno Hospital, tutelado pela Misericórdia, por outro iniciou, através do Sanatório, uma eminente atividade médica e assistencial que colocou a cidade mais alta de Portugal nos roteiros internacionais das estruturas de saúde vocacionadas para o combate à tuberculose.
O fluxo de tuberculosos superou, largamente, as previsões, fazendo com que os edifícios do Sanatório Sousa Martins se tornassem insuficientes perante a procura; este era aconselhado a todos quantos sofriam de «tuberculose pulmonar, anemia, fraqueza orgânica, impaludismo, etc.», como noticiava a imprensa local.
O impacto económico e cultural destas duas instituições (Sanatório Sousa Martins e do Hospital da Misericórdia da Guarda, a que seria atribuído o nome do então Provedor, Dr. Francisco dos Prazeres) fez-se sentir ao longo de várias décadas, como tem sido reconhecido e evidenciado em vários trabalhos.
Na cidade conjugaram-se, nessa época, uma série de fatores que viabilizaram a concretização do sonho de alguns, alicerçado numa sólida determinação e na multiplicidade de atos solidários, apesar dos circunstancialismos político-sociais do Portugal do início do século XX.
É interessante verificar o tácito entendimento entre representantes de diferentes posturas ideológicas em função do momento festivo que a cidade ia viver, tanto mais que o ato inaugural destas unidades de saúde era engrandecido com a presença do Rei D. Carlos e da Rainha D. Amélia. A Guarda, como foi afirmado na imprensa local, não podia abdicar dos seus pergaminhos de cidade fidalga e hospitaleira.
A inauguração (inicialmente prevista para 28 de abril e depois para 11 de maio) dos três pavilhões que integravam o Sanatório ocorreu a 18 de maio de 1907, com a presença do rei D. Carlos e da Rainha D. Amélia que materializou nesta instituição de tratamento da tuberculose a homenagem a Sousa Martins, atribuindo-lhe o nome daquele clínico, cuja ação e dinamismo ela tinha já evocado numa intervenção pública, no seio da Associação Nacional aos Tuberculosos, realizada em 1889.
«Aos dezoito dias do mês de Maio de mil novecentos e sete, num dos edifícios recentemente construídos no reduto da antiga Quinta do Chafariz, situada à beira da estrada número cinquenta e cinco, nos subúrbios da cidade da Guarda, estando presentes Sua Majestade a Rainha Senhora Dona Amélia (…), procedeu-se à solenidade da abertura da primeira parte dos edifícios do Sanatório Sousa Martins e da inauguração deste estabelecimento da Assistência Nacional aos Tuberculosos, fundada e presidida pela mesma Augusta Senhora (…)». Assim ficou escrito no auto que certificou a cerimónia inaugural da referida estância de saúde.
O jornal “A Guarda”, num texto intitulado “A inauguração do Sanatório Souza Martins – impressões d’um forasteiro”, relatou que D. António de Lencastre começou por ler «o seu relatório. Não se ouve quasi nada. Só se sabe que cita Hipocrates e elogia Souza Martins. O discurso tem todo o ar d’um relatório. Vê-se que está escrito à machina em quatro folhas de papel branco. Ha numeros à mistura (…) Vem depois Lopo de Carvalho, cuja voz também sumida não nos deixa ouvir bem» todo o seu discurso.
Nesse mesmo dia, cerca das 15 horas, o Rei D. Carlos e a Rainha D. Amélia foram inaugurar o novo edifício do Hospital da Misericórdia da Guarda, na atual rua Dr. Francisco dos Prazeres. Na capela da nova unidade hospitalar teve lugar a cerimónia da bênção do edifício, pelo Arcebispo-Bispo da Guarda, «seguindo os monarcas para a enfermaria dos homens onde o sr. Provedor na presença de numerosa assistencia leu um bem elaborado relatório sobre a construcção das obras do novo hospital».
Hoje, o estado de abandono e degradação dos antigos pavilhões do Sanatório Sousa Martins não dignifica uma cidade que se quer afirmar pela história e anseia ser Capital Europeia da Cultura. Tal como aconteceu da data festiva atrás referida, é urgente uma união de esforço e a procura dos melhores planos no sentido de serem recuperados, salvaguardados e utilizados esses edifícios seculares.
Anotar a passagem dos 114 anos após a inauguração do Sanatório Sousa Martins não é cair em exercício de memória ritualista, mas apelar – uma vez mais – para a preservação do património físico de uma instituição, indissociável da História da Medicina Portuguesa, da solidariedade social, da cultura (pelos projetos que criou e desenvolveu) e da radiodifusão sonora portuguesa (na Guarda continua a emitir a Rádio Altitude, a mais antiga emissora local no nosso país); serve também para recordar o historial de uma instituição que continua a ter no Hospital Sousa Martins uma sequência assistencial e referência evidente nestes tempos de pandemia
O Parque da Saúde da Guarda não pode continuar a ter no seu seio uma memória agonizante de um Sanatório que constitui um incontornável ex-libris da nossa cidade.

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Hélder Sequeira

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