Uma nova capitalidade para a Guarda

Escrito por Pedro Fonseca

«Não nos admiremos, por conseguinte, que a realização pessoal, a formação cívica e o exercício da cidadania se assumam cada vez mais como miragens inalcançáveis»

Alguns anos após a Revolução Francesa (1789), os poetas ingleses Samuel Coleridge e William Wordsworth anunciaram que também queriam mudar o mundo. Não através da política, mas através da poesia.

Na altura, a industrialização dava os seus primeiros passos e, com ela, a ciência e a tecnologia começavam a inflacionar a sua centralidade na vida das sociedades humanas. Desde então, o reinado da tecnocracia tem vindo a admitir cada vez menos espaço e tempo para as artes e as humanidades.

Não nos admiremos, por conseguinte, que a realização pessoal, a formação cívica e o exercício da cidadania se assumam cada vez mais como miragens inalcançáveis.

Não nos admiremos também que a política se revele cada vez mais impotente na perceção e resolução dos principais problemas que nos afetam e que as vozes dos políticos, salvo raríssimas exceções, se limitem a reproduzir discursos ocos e estéreis que parece já termos ouvido centenas de vezes.

Já na segunda metade do século XIX, em plena era de afirmação do cientismo, Antero de Quental avisava que a ciência jamais poderia substituir o papel das humanidades no entendimento das várias dimensões do humano e menos ainda no entendimento do Homem como um todo.

Com efeito, necessitamos das humanidades para melhorar o processo de tomada de decisão política, quer no enquadramento das evidências científicas, quer na execução das várias etapas que integram o ciclo de vida das políticas públicas (concetualização, elaboração, implementação e avaliação).

Em ano de eleições autárquicas e em plena candidatura da Guarda a Capital Europeia da Cultura, o cenário não poderia ser mais propício para o aparecimento de projetos que visem uma valorização efetiva das artes e das humanidades no nosso concelho.

A Guarda deve acolher e promover a frequência gratuita, para todas as faixas etárias, de cursos e de oficinas de cinema, dança, desenho, escultura, filosofia, fotografia, história, ilusionismo, línguas, literatura, música, pintura, poesia, teatro, com a dimensão formativa centralizada numa Universidade Livre e a dimensão criativa realizada numa Academia de Artes e Letras.

Não faltam espaços na Guarda para acolherem equipamentos desta natureza, nem profissionais da área das artes e das humanidades para lhes darem vida. Partilho a convicção de que um projeto cultural e artístico, alicerçado nestas duas fundações, permitiria à Guarda, por um lado, assumir-se, a curto prazo (muito antes de 2027!), como um importante centro artístico e humanístico nacional e internacional, e, por outro, contribuir de forma decisiva para a formação humanística e cívica dos seus cidadãos.

Uma última nota: a ameaça de revolução de Coleridge e Wordsworth foi levada a sério pelas autoridades da época, tendo os dois poetas românticos sido alvo de vigilância apertada pela polícia durante várias semanas.

Hoje, volvidos mais de 200 anos desde a publicação da sua memorável obra conjunta “Lyrical Ballads” (1798), ninguém duvida de que foram bem-sucedidos no seu intento: os seus versos mudaram o mundo e continuam a inspirar novas gerações a fazer o mesmo.

Sobre o autor

Pedro Fonseca

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