Habituámo-nos a olhar para a água como um bem adquirido e acessível: abrimos a torneira e corre água. Mas, neste momento, ninguém está em condições de nos garantir que, daqui a 10 anos, a água continue a correr como corre hoje.
Devido às alterações climáticas, o mundo moderno confronta-se com uma perturbação drástica do ciclo da água. Os períodos de seca estão a tornar-se mais longos e severos e há cada vez menos água disponível. Para piorar o cenário, a demanda por este bem essencial está a aumentar de forma significativa. A população mundial consome seis vezes mais água hoje do que consumia há 100 anos e as previsões de aumento da população mundial não ajudam: 10 biliões de pessoas em 2050! Com efeito, corremos sérios riscos de ver biliões de pessoas de todo o mundo a ficar sem acesso a água.
Não falta quem queira encontrar um bode expiatório nos excessos e desperdícios cometidos no espaço doméstico. Têm razão, em parte, mas é necessário colocar tudo nas devidas proporções. Em média, um cidadão norte-americano utiliza diariamente 375 litros de água. Em contrapartida, são necessários 80 litros de água para produzir uma laranja, 110 litros para produzir um copo de vinho de 125 ml e 15.400 litros para produzir um bife!
Os vários estudos efetuados não deixem margem para dúvidas: a grande fatia do consumo de água deve-se à agricultura, responsável por 80% a 90% do total de água consumida pela população mundial. Aqui inclui-se a produção para consumo humano e consumo animal (pecuária). Já o consumo doméstico de água representa 3% a 5%, enquanto o restante se distribui pela produção energética e pela indústria.
Para evitar um cenário catastrófico, temos de proceder a alterações significativas na nossa organização económica e no nosso modo de vida, contribuindo, simultaneamente, para uma definição compreensiva de um conceito que será estruturante nas próximas décadas: a soberania alimentar.
Temos de alterar significativamente a nossa produção agrícola. A mudança fundamental passa pela aposta no cultivo de produtos endógenos e da época, circunscrevendo as culturas que exigem enormes quantidades de água às zonas onde ela existe em maior abundância. Ao mesmo tempo, é crucial que se combatam todos os tipos de desperdício, sobretudo pela adoção de sistemas de rega mais eficientes.
Temos de alterar também os nossos hábitos alimentares, nomeadamente através da redução substancial do consumo de carne. Mas não devemos resolver um problema piorando outro que já existe. Com efeito, a alternativa à carne não poderá recair exclusivamente sobre o aumento do consumo de peixe, sob risco de se agravar ainda mais o nível de predação do mar que já ameaça tantas espécies marinhas.
A solução passa por consumir mais vegetais, cereais, leguminosas e frutas, provenientes de circuitos de abastecimento locais. De resto, o aproveitamento da terra arável e dos recursos utilizados pela pecuária permitiria reforçar de forma substancial o cultivo de produtos agrícolas a serem consumidos diretamente pela população humana.
Para os fenómenos naturais não existem fronteiras entre países. A escassez de água é um problema global que afeta e afetará cada vez mais todas as localidades do globo, mesmo aquelas que (ainda) têm acesso a reservas de água com abundância. Com efeito, é imperativo que os líderes mundiais enfrentem este desafio com a seriedade e a urgência que ele exige e que cada um de nós se saiba assumir como um verdadeiro “cidadão do mundo”.
* Historiador, ex-presidente da Federação do PS da Guarda e antigo vereador da Câmara da Guarda