Aos guardenses que, de cada vez que ouvem falar no Hotel Turismo, gostam de mergulhar em profundos exercícios de identidade, a mais recente notícia sobre o seu restauro há de ter caído bem. Aos outros, aos que repararam no tamanho do tempo, recursos e energia que a tentativa de o ressuscitar tem envolvido, a mesma notícia há de ter acabrunhado.
Gerada no facto de os primeiros, ainda que sem nunca terem fruído da sua inicial função, identificarem o edifício e os segundos não o identificarem, de todo, esta será mais uma das contradições em que não nos importamos de ser embrulhados. Importássemo-nos nós com isso, de estar sempre a ser embrulhados, em papel tão pardo que até nos faz parecer parvos, e nenhuma das outras inúmeras disfuncionalidades urbanas nos teria escapado, como tem acontecido. Embora, a bem da verdade, quais personagens vicentinas, também saibamos que se não fosse o “Hotel”, era o “Hospital” e se não fosse o hospital era outra coisa qualquer que considerássemos depender de outros que não nós.
Não se quer com isto dizer que sejamos mesmo estúpidos, ou gostemos mesmo de ser embrulhados, apenas que durante a maior parte do tempo nos prestamos a desempenhar o papel de uma coisa, da outra, ou das duas em simultâneo. Mas não durante o tempo todo, claro. Até porque se há coisas que nos unem são os entreténs que nos vão arranjando para matar as nossas horas mortas entre reclamações, reivindicações e outras de igual índole, junto do governo da nação, como tem ocorrido. Distraíssemo-nos menos e repararíamos que a cidade está feia, suja e escangalhada. A esboroar-se para os vales que a circundam, sem hipótese de avigoramento.
Infelizmente, nas cidades pequenas, nas que não se importam de o ser, são sempre as pequenas coisas a desencadear grandes comoções. Exemplos disso, por aqui, não faltam. Desde as festas, que nos ajuntam na Praça Velha, passando pelos passadiços, ecovia (seja lá o que aquilo for), Hotel, Hospital, escola de S. Miguel, tudo, desde que seja pequeno e meio deprimente, nos comove e mobiliza. Bem podem os buracos proliferar nas ruas, impedindo-nos de as desfrutar, bem pode a Guarda Gare afastar-se, cada vez mais, da zona alta, impossibilitando o contínuo urbano, bem pode o lixo transbordar para os passeios e os carros para todo o lado, bem pode a água ficar mais cara em nome da resolução de tudo o que nunca é resolvido, que o que verdadeiramente nos preocupa, e ocupa, será sempre aquilo que os outros nos impingem.
Não fora por isso e já nos teríamos perguntado para que servem os passadiços se nem um cafezito abriu por causa deles? De que nos servem as feiras e festivais se nem um novo restaurante surgiu? De que nos serve a ecovia (seja lá o que isso for) se nem um carro ficou na garagem, depois de inaugurada? Claro que todos sabemos as respostas, a questão passa apenas por conseguirmos fazer as perguntas. De certeza que, quando as fizermos, deixaremos de nos indignar por as escolas fecharem, o hotel demorar a abrir e o hospital estar a esmorecer. É que as pessoas não abalam, nem deixam de vir, por assim acontecer. Acontece assim, precisamente, porque as pessoas abalam e deixam de vir. Mas, pronto, pelo menos uma daquelas que nos impingiram como a mãe de todas as nossas desgraças parece estar em vias de resolução. Só é pena que não tivéssemos sido nós a resolvê-la, seria sinal de que a cidade estava bem e recomendável.
Triste papel, este
“Infelizmente, nas cidades pequenas, nas que não se importam de o ser, são sempre as pequenas coisas a desencadear grandes comoções. “