Tempos que (este) tempo traz

«Pode ser que, entretanto, revoadas de andorinhas venham a pintalgar o azul do céu e acordem os tempos com o seu trinar e o seu lufa-lufa constante de quem constrói casa nova ou regressa à que deixou o ano passado…»

Olha bem aquela estrela!… Ontem não estava ali, sabes? Havia por lá uma nuvem, ou talvez fossem olhos menos atentos os meus.

Repara agora na cameleira. Tem mais cinco camélias brancas que na semana passada. Ah, e houve outras que murcharam e caíram com o cair dos dias.

E vês aquela pedra que tanto musgo já criou?… Já não podemos estar ao sol sentados nela, como fazíamos. Há que deixar crescer o musgo. Que fique viçoso, que se mostre e que nos mostre que, afinal, o tempo, mesmo este tempo, passa por nós e nós por ele.

E o cão? Consegues ouvir o seu latir de quem quer ver-se livre da corrente que o amarra? Tens ouvidos para os seus uivos lancinantes durante a noite?

E o silêncio?… Ouves bem este silêncio? Não há risos de crianças na rua. Não há correrias pelo largo, não há sons de alegria no ar. O adro da igreja está agora vazio de catraios e de brincadeiras. Parece mais cinzento o adro… Tem cara de quem pede o regresso aos dias de ontem… de quando em vez apenas um vislumbre de gente que passa, como que a fugir, olhos pregados ao chão. Pessoas macambúzias, quase envergonhadas de estar a passar por aqui… Onde estão as minhas pessoas? Por onde se perderá a minha gente? Sim, porque, nem por sombras esta é a minha gente, aquela com quem cresci e me fiz, também eu, gente.

Até o meu despertador de estimação, o meu inseparável “acordador”, deu às de vila diogo. Sim, já o não ouço, ao pica-pau que, infalível, me tirava do remanso dos lençóis manhã após manhã. Por onde andará? Será que percebeu que as minhas horas de hoje são diferentes das que eram?

E o sol-pôr? Deste conta de como é diferente? Parecem mortiças as suas cores. Ou então são os meus olhos que as apercebem assim. Mesmo naquele momento que algum poeta-padrinho inspirado chamou de sol-das-almas, as cores não são já as mesmas… Talvez persista, isso sim, o sentimento de nostalgia e, em simultâneo, de um certo olhar embevecido.

Pode ser que, entretanto, revoadas de andorinhas venham a pintalgar o azul do céu e acordem os tempos com o seu trinar e o seu lufa-lufa constante de quem constrói casa nova ou regressa à que deixou o ano passado…

Pode ser que, entretanto, o cuco venha roubar algum ninho vazio (pertence ao movimento Okupa, o maganão!…) e atroe os ares do cocuruto dos pinheiros com o seu cucuricar a anunciar tempos novos…

Pode ser…

Sobre o autor

Norberto Gonçalves

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