Subjetividade e relativismo

“Sempre soubemos que não éramos todos Charlie, e muitos dos que saíram à rua empurrados pelo clamor generalizado contra a carnificina na redação do “Charlie Hebdo”, gostariam era de ter dado umas bofetadas aos jornalistas”

Enquanto o mundo continua em suspenso por uma guerra absurda, como todas as guerras, um episódio na entrega dos Óscares irrompeu de forma viral no universo mediático em que vivemos. E, uma semana depois, a bofetada de Will Smith a Chris Rock continua a dividir opiniões.
Como escreveu João Miguel Tavares, no “Público”, quando «eu era novo», aquilo que Will Smith fez a Chris Rock chamava-se agressão. Ponto! Agora, pode chamar-se o que quiserem – “um caso de masculinidade tóxica” ou a defesa intransigente a uma suposta ofensa à mulher… A primeira leva-nos a concluir que Will Smith é um idiota, pois bateu num colega por causa de uma simples piada sobre a sua mulher. A segunda convida cada homem, a ter um pouco mais de bom senso.
A agressão ignóbil de Will Smith a Chris Rock não é apenas uma bofetada, é uma prova de uma normalização da violência em que um agressor é desculpado mesmo quando comete um ato selvagem inadmissível. Como a Vladimir Putin, também Will Smith devia ter sido parado de imediato, por agressão. A violência e a agressão não podem ser a opção consentida, permitida e aplaudida. Não é por ser um grande ator ou uma estrela no firmamento hollywoodesco que se pode permitir que aquela investida passe impune.

Denzel Washington terá sussurrado ao ouvido de Will Smith: “É quando estás no momento mais alto que o diabo te vem buscar”. E nesse momento, o próprio percebeu que tinha exagerado. Mas era tarde. Ainda chorou, mas as lágrimas dos violentos nunca lavam os pecados. A reação violenta a uma piada inofensiva sobre a doença de Jada Smith (alopecia areata), uma doença que afeta a autoestima (os homens convivemos bem com ela, ficamos carecas… mas para as mulheres é mais complicado) é uma reação excessiva. Mas no fundo o que está em causa e merece reflexão é a intolerância perante a liberdade de expressão. Uma intolerância partilhada por milhões que, por todo o mundo, gritaram que Chris Rock (ou o guionista) não podia gozar com quem tem uma doença.
O impulso sensório está por todo o lado. Por dá cá aquela palha uma bofetada ou um processo em tribunal é o que os novos censores das redes sociais e da sociedade dos bons costumes defendem. Ana Sá Lopes (jornalista e portadora de alopecia areata) achou que a «piada é boa e inofensiva» e considera inaceitável que se coloque uma piada ao mesmo nível que uma agressão física. E acrescenta que «um destes dias haverá pessoas a fazer um “index” sobre os assuntos de que se pode fazer piadas sem ofender». Foi assim durante os 48 anos de ditadura e chamava-se censura. Os limites do humor ou da liberdade de imprensa estão tipificados no Código Penal em defesa da honra, e é uma idiotice inaceitável que haja tantos defensores de uma moralidade obtusa e violenta contra a liberdade de expressão.
De facto, sempre soubemos que não éramos todos Charlie, e muitos dos que saíram à rua empurrados pelo clamor generalizado contra a carnificina na redação do “Charlie Hebdo”, gostariam era de ter dado umas bofetadas aos jornalistas.
“CODA- No ritmo do coração” é um filme extraordinário, imperdível, emocionante. Uma perfeita história que aborda com um desenvolvimento espetacular, temas como o amadurecimento, o crescimento dos filhos, a independência dos filhos, as expectativas em relação ao futuro, e, principalmente, a vida em família – CODA é uma sigla em inglês (Child of deaf adult) que significa uma pessoa que foi criada por um ou mais pais ou responsáveis surdos. Mas enquanto todos nos centrámos na agressão de Will Smith a Chris Rock deixámos de poder perceber a beleza do filme vencedor. Não ouvimos (ou não vimos) o melhor e mais emotivo discurso gestual da história do cinema feito do Troy Kotsur, que recebeu o Óscar de melhor ator secundário, ou disfrutar com os muitos momentos bonitos da festa da sétima arte; deixámos de poder comentar os muitos filmes e excelentes filmes a concurso; deixámos de conviver com o melhor do cinema, para convivermos com a violência e com a intolerância. Não há valores absolutos, como sustentava Nietzsche, mas não podemos eliminar alguns dos valores tradicionais, ou pelo menos alguns dos critérios para a distinção do bem e do mal, do justo e do injusto, entre outras categorias morais e pessoais. Enquanto lamentamos a guerra na Ucrânia continuamos a ter entre nós quem escolhe a intolerância e a violência. «É trágico».

Sobre o autor

Luís Baptista-Martins

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