Sob o trânsito silencioso do quotidiano

Escrito por João Mendes Rosa

«Quanto mais as mentes livres e descomprometidas se envolverem na cultura – em todo o orbe cultural, aliás – mais difícil se torna o predomínio da promoção individual e avulsa, contrária ao mais salutar exercício governativo»

Arremeter contra as barreiras do status quo – e tantas vezes do preconceito e do medo – e viver para além das impossibilidades ditadas pela mentalidade pequeno-burguesa com que amiúde nos vamos deparando, dá frutos que transcendem o próprio transgressor e os tempos vindouros acabam por conferir a imensa convicção de que valeram a pena as noites mal-passadas, as incompreensões, as angústias, os dissabores – e as calúnias até – provindos as mais das vezes de quem devia der coadjuvante e não contraditor – momentos já largamente compensados pela consciência do dever cumprido e a imperturbável paz que confere a positividade dos resultados. Ao embate surpreendente e formidável do “isso não é possível”, “não estamos habituados”, “isso é de loucos”, apusemos por via de regra a constância da convicção e o afã imperturbável de quem acredita serem magnânimos os moinhos de vento e por vezes mais reais do que certos certificados assinados com a venda nos olhos. Aplanado o caminho, debeladas as adversidades mais agrestes, é hoje possível com indesmentível serenidade continuar em frente; é possível reviver e repensar o “Simpósio Internacional de Arte Contemporânea Cidade da Guarda” – cuja concepção assinámos com o gosto humilde de quem serve – e outros projectos igualmente estimuladores da cultura e que significam um renovado desafio à criatividade artística da urbe altaneira – minha querida e sempre adorada mátria. É, pois, com indizível agrado que assistimos ao prosseguir do rumo inicial e tal contentamento tanto mais se entumece quanto desejamos o SIAC capaz de se superar a si mesmo, diversificar-se, galvanizando ainda mais sectores da cultura regional, nacional e internacional. Um exemplo cabal disso é a mobilização de individualidades já abordadas a outras instâncias, ou aquelas cuja colaboração – por ditames meramente circunstanciais – acabou por não se concretizar no imediato, mas cujo gérmen ficou felizmente. Refiro, a título de exemplo, a Sofia Areal – cujo talento e consagração aparecem reavidos, para uma exposição, segundo me transmitiu a própria artista numa agradabilíssima conversa, com enorme júbilo para mim, enquanto preparamos uma merecidíssima retrospectiva que cremos vir a ser obra de fôlego. Nomes como Sofia Areal ou Fernanda Fragateiro – que já em 2017 levara ao Museu da Guarda uma soberba exposição – engrandecem a Guarda. Como a engrandeceram Cabrita Reis, Rui Chafes, Zulmiro, Croft, Paula Rego, Cutileiro, Piteira, Rita ou Pires-Vieira. Porque a cultura na Guarda, que tem uma vocação decididamente nacional e ibérica, necessita de sacudir de si as agendas pessoais e os interesses particulares que a confinam uma e outra vez a um ensimesmamento artificioso e nefando – porém já pertencente aos domínios da sociologia. São incrivelmente transparentes os desígnios nefandos de quem se quer valer da sua posição para aproveitamentos pessoais, fazendo-os prevalecer a todo o custo – com recurso até à ridente exacerbação modal e o exaspero comportamental. Quanto mais as mentes livres e descomprometidas se envolverem na cultura – em todo o orbe cultural, aliás – mais difícil se torna o predomínio da promoção individual e avulsa, contrária ao mais salutar exercício governativo. É por outro lado com redobrada satisfação que vemos a Colecção de Arte Moderna e Contemporânea regressar à Guarda (a título de depósito) depois de ter iniciado tal processo com sucesso em 2016, numa primeira reunião em Lisboa com o amigo de longa data João Neto (director do Museu da Farmácia) e de outras duas subsequentes (uma com o titular com o pelouro da Cultura e outra com a arqueóloga e então colaboradora do Museu da Guarda, Ana Luísa Augusto). Feliz pela consumação de uma aposta que partiu do signatário desta crónica!
Pela nossa parte, saberemos, assim, corresponder sempre – ainda que por vezes indirectamente (e tantas vezes no silêncio…) sem os alardeamentos que servem os interesses falados – com pronta positividade a tudo o que contribua para que a cultura do torrão natal se robusteça e afirme. Ainda que sem a visibilidade de uma assinatura prosseguiremos; mesmo quando se pretende emudecer vontades, pois não será nunca possível apagar rostos e nomes, já que o comprometimento é, para sempre, visceral e inabalável. Tantas e tantas vezes o nome da Guarda vem, redivivo, em tertúlias e rodas de amigos e jamais nos escusamos a dar a nossa coadjuvação, a cooperação desinteressada, pois assim é que está correcto. Servir a cultura da Guarda, não no púlpito ou na tribuna, mas efectivamente, no trânsito silencioso do quotidiano, pois a nossa caminhada faz-se desde a tenra meninice pelos meandros imperscrutáveis da cultura… ou não tivéssemos nascido a escassa centena de metros da casa onde viveu, na cidade mais alta, Nuno de Montemor.

Sobre o autor

João Mendes Rosa

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