Sinsígente

Escrito por Diogo Cabrita

A morte, por vezes, ofende, outras liberta, outras é desfecho expectável ou desejado! A morte por ninharias indigna mais. A violência desnecessária corrói a relação entre todos os animais. Até os búfalos combatem os leões. Até as andorinhas rasam junto a nós se chegamos aos ninhos. A violência do dedo apontado, da questiúncula ruidosa, do mini ditador, do acusador agressivo, da intolerância, é a face contrária do provocador. Há tipos que invadem o espaço alheio sem problemas, os que colocam altifalantes no silêncio da praia, os que libertam um cão que me morde a perna no areal, os condóminos que impedem o idoso de ter elevador no seu piso, os senhorios que deixam degradar tudo, os inquilinos que se esforçam por destruir.

A interface entre pessoas devia ter um nome que especificasse essa fronteira. Era o “sinsício da gente” o “sinsígente”. Tudo o que se refere a contundência de trânsito, a discussões de vizinhança, a violência de género, esse racismo, essa raiva dos estrangeiros, devia estar nesta linha que se tratava com um comprimido. No fundo, há ali uma invasão do espaço alheio que projeta o pior dos outros. Mas tudo isso é doença. Há uma maleita quando células trepam sobre suas congéneres. Os canais de interligação são mais elevados no Japão que na Reboleira, ou que em Chelas, ou em Massamá. Um estúpido detesta um vizinho que até pode ser, ou não, tão estúpido como o primeiro. Um pega numa arma e desfere disparos. Acaba uma vida, destrói-se outra e reescrevem-se muitas mais. Surgem viúvas e órfãos. O suicídio de Pedro Lima vai reescrever pelos menos seis vidas. A morte de um jovem ator em Lisboa constrói mais quatro novas narrativas. A morte é como uma tela em branco para os que ficam e é uma dramática ofensa para todos nós, se evitável. Bruno Candé Marques morreu como no cinema: com tiros na via pública. Quem o matou queria ajustar contas com ele. Não sei se era racista. Não sei se era estúpido. Não sei se foi uma altercação ou uma gritaria. Sei que não houve roubos, nem provocações naquela hora. Deixo a justiça esclarecer. Deixo tempo para refletir nas verdades que vão contar a realidade. É o direito do contraditório. Para mim não há heróis e não há pessoas sempre boas, nem sempre más. Recuso-me a fazer ideologia da morte. Recuso apoiar esses narradores de racismo sempre e só num sentido. Decapitaram uma tailandesa por dinheiro. Mataram um jovem branco no Campo Grande por um telemóvel. Mataram um miúdo lindo, de Cabo Verde, em Bragança. Anavalharam-se nos areais da Caparica e Cascais. Tudo razões fúteis, tudo solúvel se os mecanismos de defesa da fronteira fossem mais ativos e mais presentes. Tudo gente estúpida, doente, mal formada, mas tudo gente! Gente são pessoas! Pessoas formam o tecido social que está cada dia mais doente: pelo calor, pela miséria, pelo excesso de impostos, pelo confinamento, pelos baixíssimos índices de cultura, pela redução da importância das forças de segurança, a lentidão dos tribunais, o nivelamento por baixo da inteligência e dos diplomas, alguma frouxidão das leis que interferem nesta beligerância de fronteira, o reconhecimento do limite…

Sobre o autor

Diogo Cabrita

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