Sapos, escorpiões, a metáfora e o medo

Escrito por Jorge Noutel

“As fábulas têm essa magia de espelhar para o imaginário aquilo que a realidade nos apresenta, alertando-nos para os perigos de acreditarmos em tudo e de confiarmos nas inconfessáveis intenções de gente que não passa de escorpiões.”

O atual momento da vida política portuguesa traz à memória a célebre fábula do sapo e do escorpião. Em poucas palavras, um escorpião que estava a passar junto à margem de um rio encontrou um sapo. Como o escorpião queria atravessar o rio, mas não sabia nadar, pediu ao sapo que o ajudasse na tarefa. O sapo perguntou ao escorpião se o achava assim tão tolo que se prestasse a tal tarefa, certo de que a meio da viagem seria morto. Retorquiu o escorpião que nunca o faria, pois isso significaria a morte de ambos. Contudo, depois de ter conseguido com tal argumentação convencer o sapo, fê-lo mesmo. Quando o sapo, atónito, lhe perguntou porque o havia feito, o escorpião limitou-se a responder que não passava de um escorpião e que essa era a sua natureza.
As fábulas têm essa magia de espelhar para o imaginário aquilo que a realidade nos apresenta, alertando-nos para os perigos de acreditarmos em tudo e de confiarmos nas inconfessáveis intenções de gente que não passa de escorpiões. Significa isto que existem pessoas das duas naturezas na nossa sociedade, sapos e escorpiões, e que cabe a cada um de nós ter a perspicácia de as identificar quando temos de tomar decisões.
Os sapos são aquelas pessoas que tentam agradar a todos, tipicamente chamadas de “boazinhas”. Se um escorpião não se recomenda, gente desta ainda menos. De facto, não precisamos de pessoas boazinhas, mas sim de pessoas boas, que saibam impor limites, proteger-se dos aproveitadores, colocar cercas nos seus territórios pessoais, pessoas que tenham autoestima, amor-próprio, que se saibam reconhecer o valor que têm.
Os escorpiões são aqueles indivíduos aproveitadores, muitas vezes até simpáticos, excelentes comunicadores, mas extremamente egoístas e egocêntricos. Só pensam na própria felicidade e em retirar benefícios através das relações com outras pessoas. Usam-nas como se fossem uma escada, pisam-nas para conquistarem o que querem.
Vem isto a propósito da denominada crise política motivada pelo chumbo do Orçamento de Estado para 2022. Crise política, em democracia, deve significar confronto de ideias, oportunidade para os cidadãos, se assim o entenderem, promoverem mudança, transformação e avanço social. Mas se o termo é intrinsecamente uma forma de se atingirem objetivos políticos, convém que os métodos e os processos sejam transparentes. Não se pode andar a ameaçar os diretos intervenientes, representantes dos cidadãos, com o papão das eleições. Em democracia, mormente na democracia representativa, as eleições são o meio maior e mais nobre para os cidadãos se manifestarem a favor ou contra quem os governa. Pena é que este método de intervenção cívica se aplique apenas aos representantes parlamentares e outros que tais, mas já não seja extensivo a outros níveis do sistema, nomeadamente às estruturas dirigentes das várias instituições do Estado. Aí, a democracia representativa conhece os seus limites e fica à porta, permitindo aos titulares de tais órgãos que se escondam atrás dos representantes do povo. São estes últimos quem, distorcendo o contrato social com os eleitores, coloca assim, depois, os sapos ao serviço dos escorpiões, em nome da subserviência a todo o tipo de interesses e de acordo com as suas próprias conveniências pessoais.

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Jorge Noutel

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