Diz a cultura popular que o pior cego é aquele que não quer ver. Quando, miúdo, ouvia pelas primeiras vezes esta expressão, interrogava-me sobre o seu real significado, julgando-a, apesar dos parcos recursos interpretativos, demasiado dura e incomplacente para com quem tinha a infelicidade de ser invisual (adjetivo, este sim, em conformidade com as orientações pós-modernas). A partir da adolescência passei a interpretar a expressão como sinónimo de ignorância, teimosia, ou a conjugação de ambas.
Mas se hoje alguém me pedisse para explicar o adágio a quem não o conhecesse, ou o não compreendesse, sugeriria que ouvissem as reações de Rui Rio, presidente do PSD, e de Francisco Rodrigues dos Santos (mormente conhecido por “Chicão”), presidente do CDS, feitas na noite das presidenciais a propósito dos resultados.
Líder de um PSD titubeante na oposição e incapaz de descolar nas sondagens, sempre sob ameaça de metamorfose em partido médio, ocorreu a Rio identificar o PS como maior derrotado. Ignorou que o primeiro-ministro, António Costa, já depois de lançar a recandidatura do Presidente para dispersar atenções num momento difícil para o Governo, conferiu implicitamente apoio à reeleição de Marcelo Rebelo de Sousa por considerar que isso lhe seria benéfico. E é mesmo.
Agora, com Bloco de Esquerda e PCP fragilizados por novos desaires eleitorais, e a ameaça da direita radical e populista poder chegar ou influenciar o poder, António Costa tem todas as condições para continuar confortavelmente em São Bento. Se Passos Coelho foi a cola imprescindível para juntar a geringonça, bastará doravante a Costa acenar ao decisivo eleitorado do centro moderado com o “papão” da direita radical. E poderá fazê-lo de forma ainda mais enfática, até porque o que está em causa não é sequer comparável.
O líder “laranja” ouviu Ventura gritar que não haverá Governo do PSD «sem o Chega». O mesmo Rio que admitiu aliar-se ao Chega se o partido «se moderar», viu Ventura intensificar a agressividade política e a boçalidade numa campanha que só deixou dúvidas para quem quiser nelas perorar. Na ressaca da eleição, David Justino, uma voz coerente entre os “vices” do PSD, teve de se demarcar: «Com este Chega, é impossível conversar». Rio aguarda pela moderação redentora.
Pelo seu lado, “Chicão” tentou escapar à irrelevância política proclamando, «uma vez mais, uma vitória eleitoral», a exemplo do que já fizera aquando das eleições nos Açores. Com o CDS em risco de perder assento parlamentar e, quiçá, em risco de extinção, pedia-se ao líder centrista maturidade para interpretar o maior significado, para o seu partido, das presidenciais: Ventura continua a crescer, não só, mas também, à custa de eleitorado outrora centrista, e a tendência não é de inversão.
Rio e “Chicão” não perceberam, ou fizeram que não perceberam, que parte relevante da votação em André Ventura é proveniente de habituais eleitores sociais-democratas e centristas. Ao contrário de leituras mais simplistas que apontam para uma transferência direta de votos do PCP para o candidato populista, a transferência existe, mas do eleitorado nacional-conservador (muitas vezes saudosista do Estado Novo) que PSD e CDS incorporaram a partir do PREC, assim prestando um importante serviço à consolidação democrática.
Enquanto o PSD suspira por Passos, no CDS aspira-se tão só pela salvação. Vão faltando intervenientes. Diz-se que em terra de cegos, quem tem olho é rei. Mas não basta ter olhos, é preciso saber olhar.
Crónica escrita a 25 de janeiro