Revitalizar a tradição

Escrito por Hélder Sequeira

«Salvaguardar certames que estão profundamente ligados às tradições citadinas, como é o caso da feira de São João, é evidenciar uma identidade»

Apesar dos conhecidos condicionalismos ainda existentes, há datas no calendário guardense que importa sublinhar de forma a não se perderem nas sombras do esquecimento…
Outrora, um dos cartazes de promoção da Guarda, durante largas décadas, foi a feira São João que desempenhava um eminente papel de dinamização económica e social, integrando um conjunto de certames com forte projeção regional.
A feira anual de São João, que ocorre no dia 24 de junho na Guarda, foi criada em 1255 por carta régia de D. Afonso III; este documento estabelecia, como assinalou a historiadora Virgínia Rau, que «devia começar oito dias antes da festa de S. João Baptista e durar quinze dias. Todos os que viessem à feira com as suas mercadorias estariam seguros e isentos de penhora durante trinta dias».
No decorrer da segunda dinastia a feira de São João na Guarda continuava a registar grande importância e no século XV era costume os «criadores e lavradores de Castelo Branco e do seu termo levarem os gados da sua criação para venda na feira da Guarda».
Será igualmente no decorrer desse século que se começa a desenhar uma evidente decadência das feiras no reino português, panorama a que não é estranho o novo mapa dos centros comerciais, no litoral, alimentados pelos Descobrimentos; contudo, com maior ou menor impacto, elas sobreviveram; a feira de São João continuou a ser um destacado evento citadino.
Nos finais do século XIX a cidade enchia-se, muitos dias antes de «grande quantidade de forasteiros», e não faltavam, pelas principais artérias as «costumadas fogueiras com danças e cantos».
O teatro, os concursos de gado e as touradas constituíam alguns dos pontos de atração do cartaz citadino, nesses dias de enorme agitação festiva e de muitas transações comerciais.
A viagem de comboio até à Guarda era incentivada com significativas reduções nos preços, oportunidade aproveitada por numerosas pessoas, que engrossavam a multidão de visitantes espalhados por todos os cantos da cidade.
Este quadro, festivo, comercial e religioso – componente que também não faltava – repetiu-se, com mais ou menos cambiantes, durante décadas, deixando um inquestionável impacto na vida da cidade.
Aliás, a própria Câmara Municipal da Guarda deliberou solicitar ao Governo, em julho de 1954, a «necessária autorização para considerar como feriado municipal do concelho da Guarda o dia 24 de junho de cada ano».
O executivo municipal, de então, argumentava que os festejos de São João «desde tempos imemoriais atingem proporções de relevo», sendo por isso considerado «dia festivo em toda a região»; por outro lado, a Câmara Municipal aduzia a realização da «importante feira anual de S. João, reputada a de maior expansão e amplitude da região por a ela acorrerem com os seus produtos e gados as populações de toda a região beirã e até transmontana»; as estas razões acrescentava-se ainda a intenção de o dia passar a figurar no período das «futuras Festas da Cidade» da Guarda.
O médico e escritor Ladislau Patrício (o terceiro diretor do Sanatório Sousa Martins) anotava, numa das suas obras, que «nas vésperas do dia 24 de junho, noite e madrugada, é contínuo o formigueiro de feirantes, a pé, a cavalo, em carroças e em carros de bois, tropeçando nos calhaus soltos dos caminhos impérvios, ou batendo o macadame das estradas poeirentas e brancas».
Ao longo das últimas décadas as tradicionais festividades, e animações, em homenagem a São João têm perdido o brilho e a movimentação de outrora, sobretudo em torno da feira que tem aquele santo popular como padroeiro.
Se é certo que na sociedade hodierna as motivações dos consumidores são de longe bem diferentes, mercê de múltiplos fatores, também é verdade que a Feira de São João (à semelhança de outras congéneres) poderia ter reconquistado uma nova afirmação no contexto regional, aplicadas que fossem as adequadas fórmulas e garantindo os apoios inerentes a uma realização com este perfil.
O contributo dado por atividades de recriação e animação da data referenciada devia ser repensado e retomado – logo que estejam dissipados este tempo de pandemia e de incerteza – com a devida a atempada preparação; iniciativas que podem e devem coexistir com o certame propriamente dito, proporcionando-lhe um espaço condigno e definitivo.
Salvaguardar certames que estão profundamente ligados às tradições citadinas, como é o caso da feira de São João, é evidenciar uma identidade – que não se fique apenas pelo tradicional e saboroso caldo de grão – e recuperar um cartaz que está ainda na memória de muitos; um cartaz a revitalizar num adequado equilíbrio de interesses de vendedores, consumidores e visitantes, articulando-o com novos projetos complementares e sequenciais no tempo, afirmando-o no conjunto de festividades/atividades que ocorrem habitualmente ao longo dos meses de junho e julho.
Num quadro de diversidade e oferta de opções para quem nos procura ou visita está, certamente, uma das vias que podem abrir novos ciclos de desenvolvimento económico, social e turístico.
O futuro é já hoje. Ou seja, o seu planeamento é feito no presente, com objetivos claros e atitudes pragmáticas aferidas pelos interesses da comunidade.

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Hélder Sequeira

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