Rescaldo de um debate

Escrito por Diogo Cabrita

Estar a pensar em alhos e arrancam dois bugalhos e três cenouras é uma situação surpreendente. Senti-me assim a 4 de julho, quando a SIC me presenteia com um debate sobre o SNS e me sai Covid-19. Sou fã do Jürgen Norbert Klopp, treinador do Liverpool e da sua visão límpida – Está-me a perguntar por Covid? Eu sou treinador de futebol!

Porque sou médico sei um pouco mais que ele, e respondi, mas respondo ao que não vim. Esse é outro debate que requer uma preparação específica. Deixei claro que há quem saiba mais do que eu. Deixei claro que demitia a DGS, e aqui acrescento que no dia 1 de junho teria acabado com a pesarosa e deprimente conferência de imprensa que insistem em manter. A Covid-19 é hoje uma questão ideológica, muito mais que um assunto de saúde pública, ou de gestão em saúde. A emergência Covid desregulou o SNS com consequências mentais, físicas e de resposta a todas as outras patologias que farão escola no futuro. A contabilidade terá de se fazer e a análise fria, sem emoção, terá de ensinar-nos o que fazer nas próximas pandemias. Muitos iluminados, inteligentes, cientistas de renome, conduziram a humanidade a enormes tragédias.

Eu ia discutir as opções que diversos protagonistas têm tomado sem fundamentação e sem análise e sem auditoria de espécie alguma. A política de saúde do SNS está há anos na mão de estados de alma ou é vítima das crises económicas e das necessidades de libertar dinheiro do PIB para salvar instituições. Salvaram-se bancos, acudiu-se à TAP, à EFACEC, aguentaram-se juros agiotas de empréstimos do FMI e de despesas do Estado discutíveis. O que foi reduzindo foi o valor para a Saúde. A construção de centros hospitalares, em vez de apostar na proximidade, acarretou mais despesa, mais funcionários, mais lutas corporativas, ineficiência de hierarquias, e com isso a deriva do diagnóstico e terapêutica. Há muitos protagonistas exigentes para serem donos de patologias. Nunca se fez avaliação, estudo de benefícios para os utentes. Melhor ainda, quando o cliente escolhe a Braga PPP como a melhor unidade em inquéritos de saúde, termina-se com as PPP. A ideia do utente não colhe porque a ideologia manda mais, o estado de alma impera. Portugal é um caso grave no combate da infeção hospitalar, um caso negligente na saúde oral, um problema sério na saúde mental, tem dados diabolizantes nos índices de amputação por pé diabético, no surgimento de escaras de decúbito em acamados, nas listas de espera para exames complementares, no atraso na criação de grupos dedicados para as Urgências, na falta de políticas de consultas abertas hospitalares para reduzir o tempo de referenciação.

Com tanto por onde andar resolveram desmoronar instituições que funcionavam e respondiam às populações. A saúde ganha-se em prevenção, na luta contra a epidemia de obesidade, na luta pela regulamentação dos aditivos aos alimentos, na educação para a saúde, nas políticas públicas de incentivo ao exercício e redução do sedentarismo. Com tanto que fazer, a opção é nas coisas que ninguém provou, nas decisões que não tinham nenhuma sustentação além da ideologia: exclusividade, biometria, centros hospitalares, fim das PPP, aumento de “números clausus”, construção de rede de cuidados continuados em vez de apostar na família. Esta rede começou por ser um negócio político para calar autarcas que estavam contra o encerramento de atendimentos permanentes. Agora é um negócio com as IPSS para lhes valer nas horas difíceis. Mas, como em tudo neste Portugal, o preço não muda, os custos aumentam, a faneca começa a ficar incomportável.

Correia de Campos é responsável por muitas destas caminhadas em direção ao abismo e ia preparado para esse debate quando me surpreendeu a mentira fácil, a falta de sustentação argumentativa e a falta de profundidade. Então, eu que trabalho nos Covões, não sabia que de lá retiraram Urologia, Gastro, Oftalmologia, Nefrologia, Diálise, Pneumologia, Infecciosas, Cardiologia quase toda, Ortopedia recentemente? Reduziram mais 20 camas de Cirurgia Geral. Desqualificaram a Urgência da margem esquerda infernizando os que trabalham na margem direita. Mas estávamos a viver o momento das anedotas? Indignei-me com o interlocutor e fiquei triste com a condução do debate.

Claro que houve em Portugal quem fizesse excelente trabalho na saúde: criação do INEM, lançamento de vias verdes para patologias emergentes, referenciações para dar volume e experiência a grupos específicos, redução de maternidades para construir lugares mais seguros para as grávidas, investimento em USF’s e em experiências importantes de relação Medicina familiar e hospitais.

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Diogo Cabrita

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