Reler o passado com os olhos no presente…

Escrito por Hélder Sequeira

“Estaremos, com essa atitude, a honrar os esforços, o entusiasmo, o saber e o contributo de quantos editaram e mantiveram jornais locais e regionais, colocando-os ao serviço da democracia e da liberdade.”

Como já tivemos o ensejo de sublinhar em anotações anteriores, o distrito da Guarda foi pioneiro da imprensa, tendo aqui surgido alguns dos mais expressivos jornais religiosos e políticos.
Com posturas diferenciadas, os jornais desta região tiveram um importante papel na promoção das ideias políticas, mormente do ideário republicano, constituindo a sua leitura um (re)encontro com a realidade de tempos e lugares.
Jesué Pinharanda Gomes assinalou, numa das suas obras, que o mundo da imprensa regional é «feito de insólitos achados, de experiências para nós, hoje, inimagináveis. Reflete ele o estado social e cultural de uma região num dado tempo. A progressão cronológica do aparecimento dos jornais, a tipologia diferenciada, as alternâncias ideológicas, são quadros vivos mesmo agora que, de muitos deles não temos senão raros exemplares (…)».
De facto, períodos houve em que não foi acautelada a preservação dos mais significativos títulos da imprensa regional e concelhia, resultando daí um hiato intransponível no acesso ao seu completo conhecimento.
A história da imprensa distrital merece a continuação de estudos que constituam uma sequência lógica de alguns valiosos e meritórios trabalhos já existentes. Estaremos, com essa atitude, a honrar os esforços, o entusiasmo, o saber e o contributo de quantos editaram e mantiveram jornais locais e regionais, colocando-os ao serviço da democracia e da liberdade.
Uma atitude que deverá prevalecer no presente, apesar dos sobejamente conhecidos problemas resultantes da má situação económica e financeira, que tem feito perecer vários títulos. E como afirmava o Presidente da República, há uns meses atrás, o desaparecimento de órgãos de comunicação «é sinal de democracia doente».
Estas notas de hoje surgem a propósito da recente passagem de mais um aniversário sobre a implantação da República em Portugal, que nos remete para um olhar sobre a imprensa que serviu de meio de divulgação dos princípios republicanos; de onde ressalta o relevante papel por ela assumido (imprensa local, regional e nacional) e onde encontramos as conceções políticas defendidas, realidades sociais e económicas de então, o modo como foi recebido o novo regime, após o derrube da Monarquia. Importa trazer ao conhecimento das gerações atuais os nomes de personalidades (esquecidas ou ignoradas, em tantos casos) que lutaram fervorosa e apaixonadamente pelos seus ideais políticos.
Servir «dedicadamente a causa pública» era um propósito comum manifestado pelos redatores da imprensa republicana, e reafirmado, tantas vezes, após o 5 de outubro de 1910.
«A imprensa ruge e canta», escrevia José Augusto de Castro em “O Combate”, um dos mais expressivos títulos republicanos da Guarda, jornal que se batia «Pela Justiça. Pela Verdade. Pela Equidade», sem baixar as armas, para não haver surpresas. «Conheço os homens, sei o que eles têm sido e são. Não me iludem atitudes. As adesões que para aí são feitas revelam ainda maior falta de carácter, de sentimento moral. As adesões representam baixeza e da baixeza há-de irromper o ódio não extinto mas apenas dominado, reprimido, por impotente», alertava o jornalista e republicano guardense.
Contudo, os avisos feitos a partir desta tribuna, como de outras, eram dirigidos igualmente para o interior das estruturas políticas. «Passada a hora da primeira vitória, entoado o primeiro cântico de triunfo, impõe-se-nos recomeçar a nossa ação em combate ao mal, à dor, à iniquidade. Proclamar a República não quer dizer extinguir a iniquidade, mas apenas avançar um passo no caminho que conduz à sua extinção», sustentava “O Combate”.
Nos jornais de matriz republicana, publicados antes e depois da data que marcou um novo ciclo na história política portuguesa, encontramos textos de grande lucidez e reflexões apaixonadas, a par de uma preciosa informação sobre o pulsar da vida local, sobre o papel interventivo de muitas personalidades, sobre as estratégias dos grupos que detinham ou pretendiam o poder, sobre as divergências pessoais ou de grupos.
Da leitura e do estudo, crítico, destes jornais poderemos evoluir para um conhecimento mais completo de um período em que o mapa político e institucional do distrito da Guarda era palco de grande efervescência e outrossim de mudanças.
Um considerável número de periódicos protagonizou a intervenção republicana, abrindo espaço de confronto de argumentos e ideias na imprensa regional por de diversificadas personalidades, oriundas de distintos meios sociais, culturais ou profissionais. Eram atores de uma interessante polivalência, como se pode deduzir através destes jornais.
Até nomes tradicionalmente associados a áreas muito específicas foram agentes ativos na defesa da República; veja-se, a título de exemplo, Augusto Gil (dirigiu “A Actualidade”), nome respeitado como poeta, mas também como republicano.
Os aguerridos e frontais “diálogos” entre títulos da imprensa regional, a criação e desaparecimento de outros, a linguagem e o desassombro de muitos dos textos publicados, a imaginação colocada para suprir lacunas editoriais ou vicissitudes relacionadas com a impressão constituem suficientes motivos para (re)lermos estes jornais, parcela ímpar do nosso património cultural e regional.
Páginas que nos suscitam uma reflexão crítica sobre o presente, num oportuno contraponto, em registo diferenciador das propostas editoriais e informativas.

Sobre o autor

Hélder Sequeira

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