Não poucas vezes me apercebo de alguns fenómenos discrepantes. Discutimos com os pobres as batatas, mas não argumentamos com o banco as taxas absurdas. Frequentemente tomamos banhos longos demais mesmo sabendo que a seca é um perigo que espreita. Vamos de carro distâncias curtíssimas e paramos perto de mais dos lugares a que queremos ir. O discurso seguinte é que devíamos caminhar mais. Honramos o prato com comida em excesso, que estava melhor no taxo quente. Jogamos fora o calor nas janelas escancaradas das instituições.
O melhor é regatear com o camponês as suas couves e os seus fumeiros para depois estoirar o pouco “ganho” e muito mais, em idas a supermercados longe de casa. Discutir com o pequeno e deixar no maiúsculo. Argumentar as futilidades na praia o mais possível, lutar na feira o máximo e depois pagar sem dúvida nas marcas fluorescentes, enganadoras e altaneiras. Há uma cultura de pisar o minúsculo, ter vergonha dos “enganos debaixo”, mas subserviência aos despudores dos patrões, dos mandantes, dos chefes e presidentes. Pagar é um fenómeno similar. Que importam os tostões levados pelo pobre, o custo levemente elevado da mercearia ali do lado, a gorjeta da simpatia, o cêntimo do engano inocente se nos contradizemos depois em superficialidade e desperdício? A mota inútil na garagem, o apartamento fechado há três anos no Brasil, a piscina onde não te banhas há sete anos. Os terrenos que deixas em pousio vinte anos. A casa perdida em Pinhel onde nunca mais passaste o Natal. Não sei que nome tem esta vergonha de “ser levado” pela formiga, de sentir engano de alguém minúsculo. Não terá nome por ser despropositado? Obediência é ser esmagado pelo dono. Servidão é aceitar o destempero dos poderosos.