Reemergindo “Manhã Submersa”: Em nome da Serra

Escrito por Thierry Santos

“A meio caminho, fica a Guarda, aquela cidade formada de “casas soturnas”, “indiferente” a tudo, onde paira um silêncio de morte, mas vista “com simpatia”. Movendo-se entre a gare onde “fatos pretos” se cruzam e a paragem da camioneta na “praça da Sé”, António jantará numa pensão ao pé do quartel, comprará artigos religiosos na Loja Azul e palmilhará a mata, sempre na companhia do bom amigo, Gama, também ele um seminarista contrafeito.”

Vindo a lume em 1954, o romance “Manhã submersa” recria o ponto de vista de um jovem aldeão, António Lopes, filho de uma família desabonada, sobre as suas vivências num seminário do Portugal profundo. A narração é assegurada pela voz do adulto em que se tornou, com bagagem intelectual, visão crítica e enunciação lírica. Esse jovem tem muito da biografia do próprio autor, Virgílio Ferreira, transcendida pelo discurso literário.
A aldeia de que o protagonista é oriundo localiza-se no sopé da serra da Estrela. O rapazinho, por vontade de uma beata rica, D. Estefânia, apostada em ser a promotora de um “futuro ministro de Deus”, é desenraizado socialmente da família, deslocado para sempre do seu ambiente normal e desterrado para um seminário, o então colégio interno dos pobres. No vai e vem entre a terra natal, Castanheira (Melo), lugar da infância perdida, e o seminário, esse universo concentracionário, sito na Torre Branca (Fundão), as viagens configuram-se como uma experiência de camaradagem, numa permanente luta entre o “eu” e o mundo circundante. Na sua luta íntima contra o despertar dos sentidos, o recalcamento de desejos e a negação de si mesmo, joga-se o destino do rapaz.
A meio caminho, fica a Guarda, aquela cidade formada de “casas soturnas”, “indiferente” a tudo, onde paira um silêncio de morte, mas vista “com simpatia”. Movendo-se entre a gare onde “fatos pretos” se cruzam e a paragem da camioneta na “praça da Sé”, António jantará numa pensão ao pé do quartel, comprará artigos religiosos na Loja Azul e palmilhará a mata, sempre na companhia do bom amigo, Gama, também ele um seminarista contrafeito.
Além do percurso iniciático de António no seminário até à sua saída, o romance apresenta nas entrelinhas o contexto sociopolítico desse sertão português na viragem dos anos 30 do século XX. Sob o signo da violência psicológica e física, vive-se numa sociedade obsoleta, a anunciar o Estado Novo. O Interior perfila-se como um mundo parado no tempo, fechado num feudo conservador. Nele, predomina uma ambiência de facciosidade, frustração e boçalidade. Nele, carrega-se o sentimento de abandono e o estigma da interioridade. É nessa geografia que bandoleiros ganharam fama.
Se os espaços de clausura em que António evolui quase sempre são determinantes na construção da sua identidade, as austeras paisagens da Estrela e da Gardunha não deixam de lhe alimentar a memória indagadora e angustiada. Fora os raros dias azuis como alegrias breves, a montanha, a flutuar entre a realidade e o imaginário, surge transfigurada pela morrinha, o turbilhão de um vento gelado, as manhãs brancas de nevoeiro, o céu negro e a geada. O sentimento que se desprende da natureza envolvente constitui, simbolicamente, a paisagem interior de António.
Romance de aprendizagem, em que se desdobra a problemática do rapaz, a voz do texto perspetiva o absurdo da sua existência e encena a revolta que foi crescendo nele por recusar a sua frágil condição. Tal como em “L’Homme révolté”, de Camus, o narrador personagem não quer mudar o mundo, apenas a vida. Ao cortar com o passado por via de uma mutilação, António prefere a incerteza do seu devir a ser condenado a um papel que outros pretendiam impor-lhe. Nesse sentido, o acesso ao controlo da sua relação com o mundo irá assinalar a sua passagem para a idade adulta.
No final, acompanhando a família, António vai para Lisboa reinventar-se e renascer no amor que sente por aquela jovem desconhecida que não é senão a irmã do saudoso Gaudêncio, o outro bom amigo falecido no seminário, vítima de um surto epidémico.
Já será possível um indivíduo reinventar-se no Interior?

Sobre o autor

Thierry Santos

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