Rádio e saúde em tempo de pandemia

«Confinada ao espaço da casa, depois de um dia de trabalho em frente a um ecrã, ligar a televisão tornou-se um exercício penoso»

É espantoso o modo como os fios da história se entrelaçam numa trama inesperada de sentidos. No momento em que escrevo, chegam-nos imagens de estranhos pescadores de corpos no Ganges e de mísseis cruzando os céus de Israel e de Gaza numa escalada de violência e de morte especialmente intolerável num mundo a braços com uma pandemia. Somos “homo videns”, para usar a célebre expressão de Giovanni Sartori, vivemos entre a vertigem e o deslumbre da imagem, tudo se transforma em motivo de espetáculo, mesmo a doença e a morte, ainda que um tal excesso nos deixe entre a anestesia do pensamento e a indiferença perante o sofrimento dos outros. Como fica patente no apelo lançado há dias pelo Diretor-Geral da OMS face à «catástrofe moral» provocada pelo vírus: Tedros Ghebreyeus pede aos países que podem dar-se ao luxo de vacinar os seus jovens (um grupo de baixo risco) para cederem essas vacinas ao mecanismo Covax de forma a permitir imunizar os grupos de maior risco nos países menos desenvolvidos e ajudar a salvar vidas (“Público”, 14 de maio).
Penso nestes dias de confinamento, nas desigualdades sociais e globais expostas pela pandemia, na saúde e na vida como um direito humano inalienável que temos de aprender a colocar acima de qualquer interesse. Penso no modo como os ecrãs tomaram conta das nossas vidas ou nos transferimos para o mundo virtual. Nos gestos quotidianos que em mim mudaram.
Confinada ao espaço da casa, depois de um dia de trabalho em frente a um ecrã, ligar a televisão tornou-se um exercício penoso. Um coronavírus gigante rodava sem parar como um planeta alienígena. Gráficos e números de internados ou de mortos desfilavam em telejornais sem fim, por entre a vozearia dos especialistas, o ruído das palavras a descolar na pista do rodapé e os gestos de um tradutor. Todo este excesso de informação e de imagens me causava uma sensação de exaustão. Desligar foi um gesto instintivo de sobrevivência. Um modo de fugir à instalação global do medo e manter a saúde mental.
No silêncio que ficou na casa procurei a companhia da rádio com o espanto de quem regressa ao tempo da infância. E nesse regresso que é o meu e se confunde com a memória da cidade onde nasci, dou conta que rádio e saúde sempre andaram de mãos dadas. A Rádio Altitude que o meu pai escutava ritualmente pela manhã nascera no Sanatório Sousa Martins, inaugurado a 18 de maio de 1907 pelo rei D. Carlos e pela Rainha D. Amélia, faz no dia em que escrevo estas linhas 114 anos. Poucos anos depois, o Sanatório não teria mãos a medir face ao crescimento da tuberculose e ao aparecimento da “Gripe Espanhola”. Quando, em 1946, um dos doentes instalou o primeiro emissor interno, nascia a rádio local mais antiga do país, passando a emitir regularmente dois anos depois como forma de “distrair”, mas também de tratar e recuperar os doentes na “Cidade da Saúde”.
Rádio e saúde cruzam-se na minha memória de afetos: desde a emoção da visita às instalações da Rádio Altitude pela mão do meu pai, o rosto do meu avô colado ao rádio Loewe que hoje conservo, aos sons dos passos na madrugada de Abril na rádio do carro e às noites longas de estudo ou de solidão. A rádio esteve sempre lá. E à rede da memória vem o pequeno transístor que sempre acompanhava o meu pai. O som do rádio era para ele o pulsar do coração do mundo em cada manhã. Um coração que inexplicavelmente deixou de pulsar no dia em que o meu pai adoeceu.
Nestes dias de confinamento, o meu rádio portátil devolveu-me o mundo que um vírus nos levou, a proximidade dos outros em tempo de distanciamento, mas, acima de tudo, levou-me ao encontro da palavra e do silêncio. Convocando todos os sentidos, a rádio exige entrega, cumplicidade, interação: faz-me ver o invisível, escutar os sons distantes, imaginar o cheiro das árvores, experimentar os sabores do mundo, imaginar e sentir um corpo para lá da voz, mesmo correndo o risco de me transformar em Isolda e o real e ficção coincidirem de modo tão improvável como em Tristan Vox, o mítico radialista do conto de Michel Tournier.
A rádio desafia-me a pensar e a sentir, a televisão confina-me ao papel de passiva e obeditosa consumidora de imagens. Rádio e saúde andam de mãos dadas. Basta escutar as histórias à espera de ser voz em tempo de pandemia.

Sobre o autor

Isabel Cristina Mateus

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