Quarto obscuro

“Tal como na Igreja medieval, esta nova religião do século XXI não está preocupada com os descrentes ou com os indiferentes. Esses, legitimamente, vão fingindo que acreditam só para não terem chatices.”

O mundo está perigoso. Uma pessoa escreve a sua opinião, julgando viver numa sociedade que preza a liberdade, e afinal arrisca-se a que um fanático de uma qualquer crença nos enfie uma faca no pescoço, uma queixa na CIG ou um insulto no twitter.
Tal como acontecia na idade a que gostam de chamar “das trevas”, o clero deste novo obscurantismo decide que palavras ferem os sentimentos das pessoas, da mesma forma que a velha hierarquia religiosa decidia o que ofendia os mandamentos de deus. O argumento essencial usado para condenar Salman Rushdie ou silenciar J. K. Rowling são exactamente os mesmos que o Vaticano usou para excomungar Galileu no século XVII: heresia.
Galileu observou corpos celestes, ou seja, fez uso da Astronomia para concluir que a Terra girava em volta do Sol. A Igreja não lhe perdoou, os progressistas encontraram um herói. Rowling observou corpos terrestres, isto é, fez uso da Biologia para concluir que tudo gira à volta do pipi (no sentido que faz diferença ter ou não ter). A Igreja exultou, os progressistas descobriram uma vilã.
Quais as diferenças entre estas duas perseguições por heresia? Basicamente, uma: a posição assumida pelas hierarquias religiosas do Cristianismo. Qualquer dia, dou por mim a ter saudades da Inquisição só para que os progressistas “woke” se juntem a mim em defesa da liberdade de expressão.
Em comum, velhos e novos padrecos partilham um puritanismo ideológico e sexual, e um ódio a qualquer pessoa que lhes questione as crenças. Tal como na Igreja medieval, esta nova religião do século XXI não está preocupada com os descrentes ou com os indiferentes. Esses, legitimamente, vão fingindo que acreditam só para não terem chatices. São aqueles que questionam se é mesmo ali que está o centro do universo que eles querem silenciar. Com um insulto, com uma queixa, ou com uma faca.

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Nuno Amaral Jerónimo

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