Na minha rua havia um prado, pequenino, onde os ouriços cacheiros se escondiam e os gatos caçavam. Um dia, alguém, ultrajado com tanta impertinência felina e herbácea, começou por lhe roubar um pedaço. No fim, acabou por destrui-lo com a arrogância de quem se julga dono deste mundo e do outro. Primeiro veio o cimento, a seguir o ferro, depois o plástico e por fim os relvados e aquelas plantas todas fabricadas em estufa e pouco dadas a viver em prados. Bem que programaram os tubos de plástico para as regar de doze em doze horas, mas a maioria acaba murcha como se o sol do meio-dia bastasse para as matar. Aonde a relva a metro e as plantas de estufa não chegaram, desenharam grandes quadrados com paralelos que, minuciosamente, preencheram com areão e gravilha branca. Por fim, à laia de parque “piqueniqueiro”, decoraram-nos com mobiliário completamente despropositado e de gosto mais que duvidoso. À falta de casa, desapareceram os gatos e os cacheiros, as papoilas e todas as outras ervas, ditas daninhas, porque nunca ninguém lhe sabe o nome. Facto que, na ausência de outra explicação, nos leva a acreditar que talvez não tenha existido outro propósito, além de os escorraçar a todos. Ora, como bem se sabe nestes dias que se nos continuam a escorregar à temperatura de 40 graus, propósito muito despropositado. Felizmente, mais do que para os quase extintos ouriços e os gatos, areão e gravilha nunca foram impedimento do ressurgir natural das belas das papoilas e das boas das ervas que, com a sua gana de viver, já quase os eclipsaram na paisagem. Do mal, o menos, o preço do areão e da gravilha, adicionado ao das pedras dos desenhos e à mão de obra de quem os fez, lá terá impedido a colocação prévia daquelas telas plásticas tão estimadas pelos ambientalistas de caserna. Considerando que, ao preço do ouro, também já encheram as margens do Noémi de lixo (os tolos chamam-lhe trilhos), em vez de o despoluírem, bem se vê que, para mal dos prados e dos rios, ambientalistas desses são coisa que por cá não falta.
Na minha cidade, a insensatez continua, diariamente, a afundar a importância das ruas pequeninas, dos prados pequeninos e dos rios pequeninos no mar das vaidades individuais. Conclusões? A primeira poderá muito bem ser a de que se a vaidade de cada um rendesse aos outros o que rende aos próprios, mesmo só com ruas, prados e rios pequeninos, éramos os maiores. A segunda, bem, para segunda conclusão arriscar-se-á dizer que, não sendo os maiores, podemos muito bem passar por ser os mais preguiçosos. No Inverno, por causa do frio. Por causa do calor, no Verão. A Primavera e o Outono até poderiam servir de interregno ao nosso preguiçar, mas também não nos dá para aí. Dá-nos mais para festejar inaugurações de placas e inaugurações de letras de placas de inaugurações. Mesmo assim, com ou sem bênção bispal, confuso e redundante como as coreografias inaugurais onde os nossos eleitos mais parecem vedetas das redes sociais do que pessoas encarregadas de nos governar. Se bem que nos pudesse sempre dar para pior, talvez não viesse mal ao mundo dar-nos para melhor.
Pretérito quase que perfeito
“Na minha cidade, a insensatez continua, diariamente, a afundar a importância das ruas pequeninas, dos prados pequeninos e dos rios pequeninos no mar das vaidades individuais.”