Prairial

1. O termo “habilitações literárias” não é tão descabido como possa parecer. E está longe de ser uma fórmula apropriada para a aridez burocrática. Vendo bem, a formação escolar tem uma dupla natureza: uma componente imediata, de ordem técnica, e uma vertente inconspícua, sedimentar, mediata, a que poderíamos chamar competência literária. Não se trata de saber escrever uma obra literária, ou um artigo científico, mas de saber ler qualquer livro, saber olhar para as coisas com tempo e precisão, reconhecer sinais impressos na realidade que aparentemente lá não estão, distribuir e juntar novos significados. As tais competências literárias. Que podem e, se calhar, devem existir fora da formação escolar. Mas dificilmente existirão sem o convite que ela nos aponta.

2. O grupo musical alemão Einsturzende Neubauten passou pelo TMG. A banda liderada por Blixa Bargeld, disseram-me, tem um carisma e uma individualidade que os precedem. Quis comprovar. Em primeira mão e total inocência. Pois que, ao contrário dos especialistas e acólitos, só conhecia a banda de nome. Estabelecer contacto com determinado grupo, sem interferência de uma exegese povoada por clichés e arrumações pré-existentes, pode ser um privilégio. Os sentidos estão em sintonia perfeita com o momento. E o impacto artístico ressoa em estado puro, sem a mediação da rotina, ou do hábito. Feito o reparo, passemos ao resto. Ou seja, a experiência visual e sonora. Contada na primeira pessoa, porque escutar os EN é um desafio único. Se os temas que se sucediam eram para mim novidade absoluta, o mesmo não se poderá dizer das ambiências sonoras. Estavam lá as trombetas do Apocalipse, as cadências impiedosas de um universo industrializado, um lirismo nostálgico e secreto, o experimentalismo ousado. Depois, tentei a sintonia fina. Até onde o meu débil conhecimento da língua alemã permitia. Não foi difícil localizar os componentes da identidade artística da banda: Berlim. A cidade ainda dividida dos anos oitenta. Claustrofóbica, mas aberta a um experimentalismo único. Meca onde aportaram alguns músicos em busca de redenção artística. Ocorreu-me Nick Cave, a sua curta aparição em “As Asas do Desejo”, o épico de Win Wenders. Alguém me disse, após o concerto, que ele e Blixa Bargeld tinham uma estreita colaboração. As alusões locais abundavam. Um tema pareceu-me dedicado à mais famosa avenida de Berlim Oeste, o Kurfürstendamm, chamada coloquialmente de Ku’Damm. E outras referências abundavam: o expressionismo dos anos 20, uma teatralização de cabaret, o que me pareceu ser um manifesto dadaísta, os temas políticos. Por momentos, vi-me transportado para a literatura: certos cenários de “Berlim Alexanderplatz”, de Doblin, ou de “Os Sonâmbulos”, de Broch. Ou para o cinema: “Metropolis”, de Fritz Lang, em destaque no Museu do Cinema de Berlim. Edificado onde foi, antes da guerra, a Potsdamer Platz, e que já tive a felicidade de visitar. O universo desta banda carismática está cheio de referências e mensagens. A que é impossível ficar indiferente. Percebi que não basta ouvir a sua música. É necessário assistir aos seus espetáculos. Onde a teatralização e a experimentação sonora e instrumental são a quintessência.

3. Periodicamente, vejo-me no centro da proverbial discussão sobre touradas. Com amigos/as ou simples conhecidos/as. É uma espécie de praxe. Debater esta “vexata quaestio” tornou-se para mim a prova do algodão sobre as qualidades cívicas dos meus interlocutores. A minha posição é simples. As touradas não me entusiasmam por aí além, mas reconheço e respeito o espaço que elas têm na cultura e nas tradições. Ao invés, os meus assanhados oponentes querem proibir. Usam adjectivos escaldantes para classificar os defensores e protagonistas dessas tradições. Lançam fatwas a quem pensa de outra maneira. São tomados pela intolerância e pela intransigência de quem quer apagar tudo aquilo que não lhe agrada. No plano político, estas pessoas têm sérias dificuldades em conviver num sistema que premeia a concorrência pacífica entre pontos de vista diversos. Cavam fossos em vez de aplanar muros. Coleccionam causas para esconder a falta de verdadeiras convicções. Num plano, digamos, cultural, acham-se os paladinos da “civilização” contra a “barbárie”. Para elas, a natureza é um presépio, onde a crueldade é desconhecida e as cadeias alimentares não existem. Só há animais fofinhos, à espera da nossa compaixão. No entanto, já que falamos em “civilização”, são incapazes do mais elementar gesto que define a vida em comum: respeitar os outros

4. Há dias, celebrou-se o Dia Internacional contra a Homofobia, a Transfobia e a Bifobia. A efeméride, vista assim, parece louvável. Obviamente, no séc. XXI, ninguém será contra o combate à discriminação. Mas a coisa não fica por aí. As associações do sector e certos políticos com falta de tema aproveitam para fazer ameaças, lançar fatwas, esgrimir anátemas contra tudo o que questionar o mais que questionável estatuto de intocáveis, que pretendem atribuir aos homossexuais. Como se uma simples orientação sexual – no fundo, uma banalidade – só por si os colocasse numa redoma, ao abrigo da espuma dos dias. Ora, uma das traves mestras de um estado de direito é não haver cidadãos acima da lei. O que inclui grupos determinados com tratamento de excepção, por motivos alheios ao interesse nacional. Se disser a um gay que é desonesto, ou tem mau carácter, porque tenho provas disso, estarei a discriminá-lo? Claro que não. Mas os activistas aguerridos que superintendem o sector diriam o contrário e eu seria logo catalogado como “homofóbico”. Já aqui falei do caso do futebolista do PSG que recusou envergar equipamento alusivo ao tema. E das represálias que os furibundos lobbies pedem para quem coloca as suas liberdades individuais à frente da propaganda. O caso é exemplar. A liberdade não pode ceder perante grupos minoritários que a pretendem condicionar. É legítimo que me recuse a fazer a apologia da homossexualidade? Sim. É legítimo que discrimine ou ataque alguém por causa da sua orientação sexual? Claro que não. Sujeitando-me a responder criminalmente. Ir mais além, é perigoso e uma ameaça a certos direitos fundamentos.

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

Leave a Reply