Portugal de relance

“Lisboa até poderia ser uma das capitais mais florescentes da Europa, diz Rattazzi, se gozasse dos seus rendimentos, o problema é que o governo absorve esses rendimentos, apropria-se deles e apenas devolve «uma parcela tão restrita que chega apenas para mandar varrer as ruas principais e pagar os calceteiros».”

Em maio, apresentei o segundo número da “Praça Nova”. O António Godinho Gil assinou nessa revista um pequeno ensaio sobre o “Portugal de relance”, um livro publicado em 1880 pela princesa francesa Marie Rattazzi (1831-1902).
Rattazzi era sobrinha-neta do imperador Napoleão. Casou-se várias vezes, colecionou amantes. O seu segundo marido, Urbano Rattazzi, era um político piemontês que fora primeiro-ministro em 1862 e 1867 de uma Itália ainda não unificada – oficialmente, a Itália nasceu em 1861, mas a unificação só terminaria com a adesão de Roma em 1871.
Culta, rica, moderna, sofisticada, enérgica, Rattazzi escreveu e publicou imenso. Esteve em Portugal em 1876 e 1879. Os portugueses que com ela se cruzaram ficaram de boca aberta. Segundo fontes da época, a princesa francesa fumava em público e, escândalo dos escândalos, mostrava uns três ou quatro centímetros de perna acima do tornozelo.
“Portugal de relance” está hoje disponível online. À época, e nas décadas seguintes, o livro suscitou reações virulentas nos meios intelectuais nacionais, a começar pela de Camilo Castelo Branco, que não gostou mesmo nada das apreciações da “Senhora Rattazzi” sobre a sua obra literária. Adiante.
Em mais de 500 páginas, divididas em 25 cartas, a princesa faz algumas observações perspicazes e pertinentes sobre Portugal e os portugueses. Eis algumas dessas observações que a deixaram perplexa:
A ausência de amor dos portugueses pelas árvores. Os próprios camponeses não só não as plantam como cortam todas as que existem.
Não havia uma gramática nem um dicionário oficiais de língua portuguesa.
O amor pelas joias dos portugueses, uma paixão que afetaria todas as classes sociais. Algumas mulheres, «à força de adornos», parecem «relicários ambulantes».
O excesso de pretensões nobiliárquicas seria uma das causas do espírito insurrecional português. Isto porque a burguesia, em vez de tentar enriquecer pelo trabalho, canalizava a sua energia para a obtenção de títulos.
A injustiça do sistema de justiça, com uma diferença de tratamento chocante entre ricos e pobres. Talvez numa das frases mais importantes do livro, Rattazzi fala do desacordo entre os costumes e as leis: «As leis são teias de aranha de que os costumes se riem, que deixam subsistir, como por amor dos contrastes, e que desfazem desde que se tornam incómodas».
O atraso da agricultura e da economia portuguesa que poderia estar muito melhor não fora a ganância do poder. Lisboa até poderia ser uma das capitais mais florescentes da Europa, diz Rattazzi, se gozasse dos seus rendimentos, o problema é que o governo absorve esses rendimentos, apropria-se deles e apenas devolve «uma parcela tão restrita que chega apenas para mandar varrer as ruas principais e pagar os calceteiros».
Apesar destas observações pouco lisonjeiras sobre Portugal, a princesa Rattazzi, de uma forma geral, gostou do que viu. Viu originalidade nos nossos usos e costumes, na própria natureza. Portugal guardara uma certa originalidade primitiva, o que gerava um certo atrativo de novidade a muitos visitantes e, ao mesmo tempo, explicava os juízos erróneos formulados a seu respeito. Deixou também rasgados elogios à família real, a Fontes Pereira de Melo, a vários escritores portugueses, em especial a Eça de Queirós.
Sobretudo, o livro é interessante porque Rattazzi é capaz de descrever, em pormenor, o que vê. 142 anos após a sua publicação, e não obstante algumas generalizações abusivas, “Portugal de relance” continua a manter uma certa atualidade desconcertante.

Sobre o autor

José Carlos Alexandre

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