Depois de um quase golpe de estado na Federação Russa, onde os tanques ferventes pararam a duzentos quilómetros da sala do presidente, seguiu-se a França, em estado de golpe, onde carros a arder pararam dentro da sala de estar de presidentes de Câmara.
Além de carros destruídos e lojas pilhadas, a turba marselhesa, motivada pelos versos iniciais do conhecido cântico com o mesmo nome, “vamos, filhos da pátria, o dia de glória chegou”, incendiou a maior biblioteca da cidade, com manuscritos medievais únicos. É com certeza uma glória inefável e indescritível, a possibilidade de fazer arder papeluchos velhos.
Sabendo que a gente nas ruas protestava contra a morte de um jovem por um polícia – que, por mero acaso, está preso e acusado de homicídio – entende-se que a melhor maneira de evitar que outros jovens conduzam ilegalmente por não terem idade e outros polícias disparem contra adolescentes é destruir todos os manuscritos de botânica e gramática dos séculos XIV e XV, não vá o Diabo tecê-las – e bem sabemos que o Diabo era bastante activo durante a Idade Média.
Entretanto, em ruas que não ardem literalmente, mas que fervilham metaforicamente, um grupo de defesa dos direitos ecológicos fez uma acção de protesto durante um desfile em defesa dos direitos LGBTIetc. Com tantos direitos a interromperem-se uns aos outros, não será muito de espantar o dia em que um qualquer badameco queira pôr tudo na ordem e o povo, cansado de espaventos, prefira ficar em casa para não apanhar doenças ou pancada.
Termino com duas notas de espanto e curiosidade. Vi, numa publicação de uma rede digital de cujo nome não me quero recordar, uma pessoa vestida (despida?) apenas com roupa interior de couro, num desfile LGBTIetc, reclamando direitos iguais, protecção e reconhecimento legal para as pessoas assexuais. Primeira nota, com certeza que a melhor forma de expressar a ausência de qualquer desejo sexual é vestir-se de forma desconstrutivamente sexualizada. Segunda nota, a protecção e reconhecimento legal das pessoas sem interesse por sexo há muito que estão institucionalizados. Chama-se casamento.
* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia