Pluvioso

«Não seria mais importante vacinar profissionais de acordo com as funções efectivas que prestam e não pelo cargo que desempenham?»

1. O escalonamento das prioridades no plano de vacinação Covid parece ser motivado por razões políticas e não técnicas. Na linha da frente, sobre os profissionais de saúde no activo, nada a dizer. Depois, PR, PM, Presidente da AR, alguns ministros, presidentes de câmara e funcionários e utentes dos lares, idem. O problema começa a partir daqui. Deputados porquê? Magistrados do MP porquê? Administração do INEM porquê? E aqueles que trabalham em permanente contacto com o público, muitas vezes em condições que deixam muito a desejar? Não seria mais importante vacinar profissionais de acordo com as funções efectivas que prestam e não pelo cargo que desempenham? Não deveriam as prioridades ser estabelecidas de modo a vacinar os cidadãos de acordo com o risco efectivo que suportam pela sua exposição, ou que infligem pela sua idade e condição clínica? Um exemplo. Os deputados designados pelo presidente da AR vão ser vacinados? OK. E porque não vacinar as prostitutas? Ninguém fala no tema. Sobretudo os partidos dos temas fracturantes. Sempre tão lestos no empossamento de novas causas. Na verdade, em meu entender, os trabalhadores do sexo deveriam ter tratamento prioritário no plano de vacinação. Nesta categoria cabem prostitutas/os, gigolos, executantes de bondage, etc. Sendo o contacto físico determinante nestas actividades, os respectivos profissionais deveriam exibir o comprovativo em conforme foram vacinados, ou testados negativamente nos últimos 15 dias. Da mesma forma que o deveriam exigir aos clientes. Para segurança dos intervenientes, famílias e comunidade. Eis uma proposta que deveria ser levada a sério.

2. Comecei a ouvir António Costa na “Circulatura do Quadrado”. Ao fim de cinco minutos resolvi fazer algumas experiências acústicas. Embora mantendo a televisão ligada, fui-me afastando para divisões cada vez mais afastadas. No final, consegui um som de fundo aceitável. Em que há uma modulação sonora centrada nas inflexões da voz. Mas em que não se percebem as palavras. É como uma lareira. Ou aquele burburinho que havia nos cafés antigamente. Aqui reforçado pela voz paternal de quem cuida de nós. Como nos oráculos dos antigos, escutados através de engenhosos mecanismos. Óptimo para uma sesta, ler, namorar, trabalhar no computador.

3. A cultura oficial tem pouco ou nada a ver com a verdadeira actividade do espírito. Aquela que não busca o aplauso imediato, nem a entronização senatorial, nem a troca de favores, nem os ofícios de comissários da cultura, ocupados em promover abencerragens de museu e satisfazer quem lhes paga. A amplitude e a generosidade da autêntica criação artística não se compadecem com expedientes veniais. O que não significa que prescindam deles. Bem pelo contrário. Existe uma confluência formal que serve uns e outros. Rodas que se tocam na mesma engrenagem, que empurram um labor comum, mas que não se relacionam para além da necessidade imediata. A verdadeira arte existe para corromper. Neste domínio, tornar-se corruptível é uma contradição nos termos. Todavia, os agentes corruptores, chamemos-lhe assim, raramente aparecem com a notinha na mão, o subsidiozinho aprovado, a referenciazinha à obrazinha no pasquinzinho, a promessazinha do lugarzinho xisbicodabota. A coisa faz-se pela visibilidade de empréstimo, o pequeno poder provinciano, o círculo territorial que ignora, entre dois arrotos e três palmadinhas nas costas, o que está à volta e realmente mexe. Note-se que, quando falo em círculo, refiro-me a reunião de interesses convergentes. Não a movimentos artísticos com forte cumplicidade pessoal e estética. Onde o silêncio é a norma e o compromisso a excepção útil.

4. Olhamos para o passado com desvelo. Raramente conseguimos decifrá-lo como um enigma. É mais fácil estendermo-nos nas almofadas que as falsas memórias tornaram confortáveis e doces. Ou assinalarmos as áreas a evitar, pelas mesmas razões. Há como que um subtil bloqueio, destinado a impedir as perguntas e baralhar as respostas. Como se uma permanente necessidade de reconciliação e amparo obrigasse à epopeia sem mácula e sem fissuras. Com os destroços varridos para a penumbra as traseiras.

5. No que me diz respeito, é fundamental organizar o pensamento como uma perseguição da realidade. Que inclui o que já lá (ou ainda) não está e o que ela pode arrastar consigo. Perceber que as coisas em si mesmas não são nada, mas tão só em relação com outra coisa. E isso é uma criação do espírito. Pensar é organizar o instante. São “Os trabalhos e os dias”, de Hesíodo. Portanto, fora de causa cair nas armadilhas da propaganda, no jargão da baixa política, no colinho da desresponsabilização, na fatuidade bem-pensante, na arrumação apressada das dúvidas, no circunlóquio da vacuidade. Podia ser de outra maneira? Podia, mas não era tão sexy!

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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