Pelo avesso da cidade

Escrito por Fidélia Pissarra

Há muito que a cidade se achava virada do avesso e os seus habitantes, além dos alinhavos que sobraram da primeira prova, só conseguiam ver-lhe as costuras. O que os confundia. Às vezes davam por eles a perguntarem-se que diabos significariam tantas linhas e cicatrizes, mas lembravam-se que os diabos tinham sido abolidos e, sem saber o que perguntar, viviam calados num avesso que os impedia de reconhecer o que quer que fosse. O choque de se verem do outro lado das coisas paralisava-os. Impedia que pensassem no lado direito – que todas as coisas têm – remetendo-os a uma sorte que julgavam sua. Assim, pelo hábito que faz todos os monges, aceitavam até o avesso das palavras: o que era dito significava o seu contrário ou o nada. Mas como ninguém gosta de nadas, preferiam sempre o contrário, convencidos de que só assim voltariam para o lado direito da cidade. A convicção era tão forte que começaram todos a andar de costas. De costas ficavam todos tão diferentes que até eram bem capazes de enganar o avesso. O problema foi quando deram por si a embater uns nos outros. Como ninguém via por onde ia, desataram a ir uns contra os outros. Por entre aquela confusão, o Antunes, o homenzito pequeno, a quem os anos passados no seminário deixaram a pele coberta de rancor e maldade, prometeu defender o bem dos habitantes da cidade em troca de avultados lucros para si próprio e deu em começar por derrubar os Silva. Por sua vez, os Silva, ao sentirem que estavam a ser empurrados por ele, na tentativa de o neutralizarem, levaram o caso aos partidos tradicionais. Mas estes, também a andar de costas, tinham sido acometidos pela onda de dissidências que o Antunes também aproveitara e, ocupados com tamanha querela, não tiveram como atender à chamada. “Só aqui estão dois militantes e não os podemos enviar para verificar o que se passa”, responderam de uma sede. Da outra, nem responderam, andavam todos entretidos a andar de costas para acharem o direito da cidade e o deles próprios. Ora, como aos maus nunca faltaram cúmplices, arreliado com as iniciativas dos Silva, o Antunes aceitou dividir os lucros do bem que defendia para os cidadãos com alguns dos seus antigos amigos de conclave para os derrubar de vez. No entanto, a validade de tal grémio ficou a depender da vontade dos habitantes continuarem no avesso da cidade e, apressadamente, lá tiveram de inventar uns slogans que os convencesse a isso. Pressa que não impediu que os mesmos fossem eficazes, releve-se, pois até impingiam crimes contra o património como obras de arte e conseguiram que os Silvas aceitassem, embrulhadas em promessas de rapidamente se verem daquele avesso da cidade para fora, as desculpas do Antunes. Entretanto, um habitante mais rabino decidiu quebrar o mutismo do costume e perguntar qual era, afinal, o bem dos habitantes no avesso da cidade que o Antunes defendia. Claro que a única resposta possível seria a indignação, mais indignada que se possa imaginar, do visado e correligionários. Ao fim e ao cabo, pensou o homenzinho pequeno e rancoroso, ninguém se aguenta com uma manifestação, suficientemente convincente, de indignação: “E você? Que bem é que já defendeu para os habitantes da cidade?” Mais rabino ainda, porque empertigado pela convicção dos desconsiderados, o habitante respondeu: “Provavelmente, menos do que o Sancho, mas, com toda a certeza, mais do que Antunes”. E lá continuaram todos, por mais uns bons meses, a andar de costas, pelo avesso da cidade afora.

Sobre o autor

Fidélia Pissarra

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