Pelas páginas da história…

Escrito por Hélder Sequeira

«O Sanatório Sousa Martins ficará perenemente ligado a D. Amélia pelo relevante papel que teve na sua criação»

Um pouco na linha daquilo que escrevemos em anteriores apontamentos, hoje – pela proximidade temporal desta edição de O INTERIOR – não poderíamos deixar passar em claro uma personalidade com emblemática ligação à Guarda. Referimo-nos a D. Amélia de Orléans, última rainha de Portugal, falecida a 25 de outubro de 1951.
Esta cidade deve-lhe um dos seus principais ex-libris, de que hoje, infelizmente, restam simbólicas e degradadas estruturas arquitetónicas, denunciadoras do desleixo e indiferença das entidades competentes. O Sanatório Sousa Martins ficará perenemente ligado a D. Amélia pelo relevante papel que teve na sua criação; empenhada nas causas sociais, esta rainha dispensou particular atenção aos mais desfavorecidos, sendo, aliás, particularmente significativo o facto de o pavilhão destinado aos doentes mais pobres ostentar o seu nome.
Maria Amélia Bourbon e Orléans nasceu em Twickenham, arredores de Londres a 28 de setembro de 1865 (curiosamente o futuro marido, D. Carlos, nasceu também no mesmo dia, dois anos antes). A filha mais velha de Filipe de Orléans (conde de Paris e chefe da Casa Real de França) e de Isabel de Montpensier, que se encontravam (à altura) exilados em Inglaterra, apenas foi viver para França em 1871. Nos anos seguintes, Amélia de Orléans viajou com frequência e frequentou os principais palácios das monarquias europeias; personagem culta, apreciava o teatro, a ópera, a pintura e a leitura, convivendo, em Paris, com os escritores mais eminentes da época. Em 1886 conheceu D. Carlos, herdeiro da coroa portuguesa, de quem veio a ficar noiva nesse mesmo ano; o casamento ocorreu a 22 de maio, em Lisboa, onde cedo manifestou as suas preocupações face ao flagelo da denominada “peste branca”.
Eça de Queirós definiu-a como «senhora de grande e dedicada esmola. E a sua esmola não baixa majestosamente do trono, numa salva, entre alabardeiros. Ela própria a leva, sob um véu espesso, a todos os recantos (…); ama a caridade racional, que se organiza, se arma em instituição, derrama o bem por estatuto». A sua atenção às questões culturais manifestou-se por diversas formas sendo a criação do Museu dos Coches Reais, em 1905, uma das mais expressivas traduções dessa postura.
Amélia de Orléans viveu em Portugal entre 1886 e 1910, num período social e politicamente muito complexo, em que soube superar muitas contrariedades e definir uma estratégia de auxílio às camadas sociais com menores recursos. A Assistência Nacional aos Tuberculosos, de que o Sanatório da Guarda foi a primeira unidade hospitalar, constituiu, nesta matéria, uma das obras mais marcantes da intervenção social da Rainha D. Amélia.
«Para a tuberculose como para outros tantos males, há meios na ciência para, se não os conjurar, ao menos diminuir os seus estragos e remediar os seus efeitos», como afirmou, em 1900, numa das suas intervenções públicas. Na cruzada contra a tuberculose, a Rainha procurou, por vários meios, canalizar recursos financeiros para combater a doença; a receita da venda do livro “O Paço de Sintra”, escrito a seu pedido pelo Conde de Sabugosa, e que foi ilustrado com desenhos feitos por D. Amélia, foi um dos muitos contributos para essa causa, em relação à qual o Sanatório da Guarda se afirmou verdadeiro baluarte.
A Rainha D. Amélia, acompanhada pelo Rei D. Carlos, veio à Guarda a 18 de maio de 1907, aquando da inauguração do Sanatório a que atribuiu, como homenagem, o nome do médico Sousa Martins (que falecera em 1897, e de quem já falamos neste jornal em anteriores edições).
A vida da Rainha ficou tristemente marcada pelo regicídio ocorrido, em Lisboa, a 1 de fevereiro de 1908, de que resultou a morte do Rei D. Carlos e do herdeiro D. Luís Filipe, Príncipe da Beira; com a aclamação de D. Manuel II como Rei de Portugal, a 6 de maio de 1908, D. Amélia passou a colaborar nos atos da governação.
Em julho de 1910, a Rainha, na qualidade de presidente da ANT, veio de novo à Guarda, numa visita, muito discreta, ao Sanatório e à filha do Conde de Tarouca, que ali estava internada. Implantada a República, a 5 de outubro de 1910, a Rainha D. Amélia foi forçada ao exílio; começa por se instalar em Woodnorton (Inglaterra), residência do irmão, e em janeiro de 1911 passou a viver em Richmond Hill. No verão de 1921 mudou-se para França; a nova residência situava-se em Chesnay (nas proximidades do Palácio de Versalhes), numa mansão designada por Château de Bellevue.
Em 1939 foi convidada por Salazar para vir para Portugal, mas a Rainha não aceitou e passou os anos da IIª Guerra Mundial em França, onde não esqueceria as suas ligações ao nosso país, tendo hasteado mesmo a bandeira portuguesa na sua residência. Seis anos depois, em maio de 1945, veio a Portugal e foi recebida de forma apoteótica; entrou na fronteira de Vilar Formoso a 17 de maio de 1945, na véspera de se comemorarem 38 anos após a inauguração do Sanatório Sousa Martins.
A Rainha D. Amélia faleceu em Chesnay (Versalhes), na manhã de 25 de outubro de 1951; o seu corpo seria transladado para Portugal, em março de 1952, tendo ficado no Panteão Nacional.
A Câmara Municipal da Guarda decidiu, a 5 de dezembro de 1951, atribuir o nome da última rainha de Portugal ao troço da EN 18 que ladeava o Sanatório e o extremo da Rua Batalha Reis; dois anos depois, a autarquia deliberou proceder à eletrificação da referida avenida, junto à qual, no interior de cerca daquele sanatório, foi inaugurado – a 31 de maio de 1953 – o Pavilhão Novo (bloco da Unidade Local de Saúde que ladeia a Avenida Rainha D. Amélia).
Ao evocarmos a efeméride a que aludimos anteriormente estamos a relembrar um importante período da história da Guarda e a projeção alcançada pela cidade no plano nacional e internacional.

Sobre o autor

Hélder Sequeira

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