Palhaços no quintal

“Note-se que, ao contrário da Ucrânia, onde um humorista foi eleito presidente, os russos entram no campo da palhaçada depois de chegar ao poder.”

Depois de demorada reflexão, concluí que devo um pedido de desculpas ao director, à redacção e aos leitores de O INTERIOR. Colaboro com este jornal praticamente desde o seu início, iniciei o “Observatório de Ornitorrincos” em 2004, participei em todas as edições do suplemento “Íntimo”, aqui publiquei em primeira mão alguns textos que viriam a sair em livro. Sempre com a mesma intenção: escrever textos com piada, lançando mão aos recursos estilísticos do humor.
No entanto, embora seja uma introspecção difícil, uma pessoa deve reconhecer quando, no seu campo, há quem seja muito melhor. Além de uma boa geração de humoristas portugueses, neste momento é muito difícil bater a criatividade dos comediantes russos. Note-se que, ao contrário da Ucrânia, onde um humorista foi eleito presidente, os russos entram no campo da palhaçada depois de chegar ao poder.
Por muito que me esforce, não consigo igualar o ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, na ironia da frase «a Rússia não invadiu a Ucrânia nem ataca alvos civis», não tenho a sensibilidade para o humor negro de Dmitry Peskov, porta-voz do presidente filho da Putina, na declaração «é preciso impedir os ucranianos de se matarem uns aos outros», e muito menos possuo o talento de Maria Zakharova, directora de informação do Ministério dos Negócios Estrangeiros, para a comédia do absurdo, quando explicou ao mundo a natureza do fascismo ucraniano: esconder a receita da sopa de beterraba (borsch).
Caro director, caros companheiros de redacção, caros leitores, é com muita sinceridade que lamento as semanas consecutivas de piadolas mal-amanhadas e pouco imaginativas comparadas com a genialidade humorística que escorre dos corredores do Kremlin, onde ainda há poucos dias mais um talentoso bobo da corte moscovita apresentou um protesto formal contra a falta de liberdade de expressão no Ocidente.
Esta gente é um pagode. Invejo as sessões de “brainstorming” na Praça Vermelha. Mas para que este jornal tenha, finalmente, boas crónicas humorísticas, sugiro que me substituam por um destes patuscos (ou uma das suas marionetas em Portugal, que também são bastante divertidas quando vão à televisão) e mudem o nome da coluna para “утконосов обсерватория”. Aí, sim, vai ser rir à fartazana.

 

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Nuno Amaral Jerónimo

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