Otelo, o herói instável

Devemos agradecer a Otelo Saraiva de Carvalho o 25 de Abril e devemos agradecer a todos os líderes que, desde então, souberam integrar todos os que pensavam de forma diferente e construíram um país livre e democrático.

O desaparecimento de Otelo Saraiva de Carvalho mereceu os mais contraditórios sentimentos e os mais divergentes comentários. Como em vida, mesmo na morte sobre Otelo não poderia haver unanimismo. Mas confesso que não esperava tanto ódio ou falta de reconhecimento, ele que que assumiu que «há em mim uma série de contradições imensas» (in Otelo, o Revolucionário).
Rui Tavares concluiu que talvez seja demasiado cedo para a história perceber o lugar de Otelo. Mas não há dúvidas de que o estrega do 25 de Abril viveu dois tempos diferentes, o primeiro, até à revolução, que faz dele um enorme herói da história, e um segundo em que o mesmo homem que dirigiu magistralmente os seus homens para a mudança de regime não percebeu os limites da sua intervenção e cometeu as maiores atrocidades à frente das “FP25 de Abril”.
Porém, sem esquecer a incoerência e instabilidade da vida de Otelo, como escreveu Vasco Lourenço no dia da sua morte (Público, 26 de julho de 2021): «Hoje, não teremos o Portugal com que cada um de nós sonhou, mas temos o Portugal que os portugueses têm sido capazes de construir. Em liberdade e em democracia». Sem dúvida! Temos o Portugal que os portugueses conseguimos construir, com virtudes e defeitos, com contradições e acertos, mas que é hoje uma democracia moderna, num país desenvolvido, de direitos, liberdades e garantias. Por isso, muito mais do que as diferenças e independentemente das ideias ou da interpretação sobre a vida portuguesa, a afirmação da democracia vale muito mais do que a discussão fátua e absurda sobre a relevância de Otelo e deve haver um reconhecimento indelével sobre o seu papel no fim da guerra colonial (12 anos) e de 47 anos de ditadura. Sem pruridos (e não esquecendo as mortes e o sofrimento de que foi responsável), Otelo foi o herói do 25 de Abril.
Estranhamente, o primeiro-ministro e o Presidente da República escolheram não evocar Otelo e não acederam a decretar luto nacional. Mas fê-lo o Presidente Ramalho Eanes: «A ele a pátria deve a liberdade e a democracia. E esta é uma dívida que nada, nem ninguém, tem o direito de recusar». O antigo Presidente da República, e homem de Abril, condena os «desvios políticos perversos, de nefastas consequências» e assegura que Otelo «tem direito a lugar de proeminência» na história, até porque «há homens que, num momento histórico especial, se ultrapassam»: Otelo «é uma dessas personalidades».
Que os portugueses continuem divididos em relação a coisas tão simples e irrelevantes para o presente, que deviam merecer a diferença de interpretação, mas a normalização e aceitação das contradições como um passado que não devemos esquecer, mas que temos de assumir descomplexadamente, sem ódios e rancores, sem questiúnculas e ressentimentos nocivos à concórdia nacional. O saudosismo de alguns não pode impedir a normalização do regime.
Devemos agradecer a Otelo Saraiva de Carvalho o 25 de Abril e devemos agradecer a todos os líderes políticos que, desde então, souberam integrar todos os que pensavam de forma diferente e construíram um país livre e democrático. A história saberá condensar e explicar os últimos 50 anos do Portugal moderno.

Sobre o autor

Luís Baptista-Martins

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