Os santos da terra quase esquecida das senhoras Marias

Escrito por Fidélia Pissarra

“Nunca mais me tinha lembrado delas, deles, nem dos seus ofícios e locais de origem. Acontece que, por estes dias, através de um discurso do nosso presidente da Câmara, não só me voltei a lembrar delas como descobri uma nova faceta à senhora Maria das-trouxas-de-roupa-à-cabeça e um novo epíteto para Alfarazes.”

A Guarda que me viu nascer mais parecia do tempo das Marias do que do século XX. Era a Guarda do tempo da senhora Maria da Póvoa (do Mileu), de Alfarazes, a leiteira e, excecionalmente, do Jorge do pão e do homem do saco. Em comum, as Marias, e os outros, tinham o passarem-nos diariamente à porta. A primeira, com um balde de lata, a buscar as sobras com que alimentava os porcos. A segunda, com uma trouxa de roupa à cabeça, a entregá-la ou a recolhê-la. A terceira, com uma bilha e uns copos de lata, vendia leite. O Jorge vinha de bicicleta, com um cesto a transbordar dos dois lados da roda traseira, trazer pão fresco. O homem do saco, com o dito ao ombro, além de recolher roupa velha e peles dos coelhos comprados vivos na praça e, mais tarde, esfolados na cozinha, servia também para as mães ameaçarem com ele as crianças que não queriam comer a sopa. As Marias, o Jorge e o homem do saco deviam ser muito velhos quando nasci, porque deixei de os ver muito antes de descobrir que a Póvoa e Alfarazes eram a terra de duas das Marias e não o seu apelido ou suas mães.
Nunca mais me tinha lembrado delas, deles, nem dos seus ofícios e locais de origem. Acontece que, por estes dias, através de um discurso do nosso presidente da Câmara, não só me voltei a lembrar delas como descobri uma nova faceta à senhora Maria das-trouxas-de-roupa-à-cabeça e um novo epíteto para Alfarazes. Segundo a convicção, atestada pelo tom de voz, cada vez mais animado e categórico, do nosso autarca, ali mesmo, em Alfarazes, a senhora Maria de Alfarazes, a lavadeira, seria viciada em “redes-sociais-da-altura” e não era de uma aldeia mas sim de um bairro. Ora, por aqueles tempos, da minha primeira infância e desta senhora Maria, alguém que passasse a vida “ligada” na água gelada do tanque lá do bairro, ou do Noémi, que outro ar poderia ter se não o de mágoa na alma e dor no coração que sempre lhe achei?
Claro que ninguém censurará tão parco conhecimento sobre quem foram e de onde vieram as senhoras Marias que ajudaram a criar a identidade guardense por parte do nosso atarefado autarca. A um presidente da Câmara com o tempo, permanentemente, preenchido pela presença, que parece fazer questão de marcar, em todos os eventos públicos pouco mais se poderá exigir. Assim, também já ninguém estranhará muito que, no próximo dia 29, S. Pedro, talvez por se ter escusado a meter na ordem a chuva, nem direito a caldo de grão vá ter. E, se bem que também não seja nada que, com um caldo verde, umas sardinhas assadas e uma mona de alecrim e rosmaninho a arder no cimo de um mastro, não se resolva, fica sempre a desfeita, institucional ao bom do santo. O que já não será de tão fácil resolução é o enigma da feira de S. João ir acontecer em S. Miguel sem qualquer acordo prévio, que se conheça, entre os santos. Ou, como quem diz, entre a Câmara, os feirantes e os fregueses. Depois, que ninguém pasme quando todos os santos da Guarda se virarem contra nós, ou de estarmos sempre a pressentir que o vão fazer.

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Fidélia Pissarra

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