Os pecados e virtudes de Graça Freitas

Escrito por Fidélia Pissarra

Numa cultura de matriz judaico cristã como a nossa, se ser mulher já não é muito vantajoso, ter figura de avó e, ainda por cima, sem propriedade fundiária, herdada ou adquirida, ser-se Diretora de alguma coisa é blasfémia. Logo, qual pitonisa, há que queimar qualquer mulher com este perfil, ao vivo e em direto. Que Graça Freitas, enquanto vice de Francisco Jorge, tenha sido o braço direito e esquerdo da Direção-Geral de Saúde não interessará para nada se não vier do feudo habitual. É esse o seu pecado. Ela até pode ter sido a operária de toda a obra, mas era o ar varonil à séc. XIX do chefe que levava os portugueses a não se incomodar, nem a incomodar a instituição, que, entregue a um homem com uma figura antiquada e aristocrática daquelas, só poderia estar bem entregue. Escrevo “pode”, porque alguém que teve a inteligência de a manter a seu lado até ao fim das suas funções nada terá de redondo ou trapaceiro, nem me ocorreria colocar em causa o caráter e competência do homem. Não me parece é nada justo que a competência da senhora seja mais aferida pela imagem (forma) do que pelo trabalho (conteúdo). E, ainda que sem qualquer veleidade de, em algum momento, achar um rasto de razoabilidade às hordas que nos irrompem ecrãs dentro, parece-me um bocado exagerado o ataque cerrado contra a senhora. A menos que, à semelhança de outros ataques similares, se queira fazer dela o exemplo que convença todas as outras a desistir de qualquer protagonismo que não cai bem a ninguém estar-lhes destinado. Aos homens não agradará ter posições subalternas às das mulheres, às mulheres não agradará a visibilidade do trabalho das outras.

Só assim se compreende que, uns e outros, se unam, em resquícios malcheirosos, como todos os organismos em decomposição, da Idade Média, só para entravar a emergência de uma gramática social mais equitativa. Parece até que, contra a equidade, no género, gerações e origens, há que marchar, marchar. O que, paradoxalmente, até será um bom sinal. Porque, se observarmos o fenómeno sob o prisma de que só quem se sente ameaçado é que se mobiliza para atacar os outros, somos levados a concluir que o patriarcado já teve melhores dias e o mito social da imagem jovem e saudável também. Primeiro, porque há muito mais mulheres com formação superior do que homens; segundo, porque há muito mais velhos que novos. A menos que não nos importássemos de ser governados, de todos os lados, por semianalfabetos incompetentes, nem que os nossos clientes fossem só jovens sem eira nem beira, nem dinheiro para nos alimentar o negócio. Como não somos assim tão estúpidos, importamos. Prova disso é uma Diretora-Geral, de figura oposta aos padrões em voga e origem despretensiosa, ter sido nomeada e, salvaguardando todas as outras, será essa a melhor das virtudes de Graça Freitas. Podem vir os corona vírus que vierem e todos os infetados por eles que o facto de uma mulher, sem sequer vestir Prada, desempenhar o cargo, anima qualquer um a acreditar que nem tudo vai mal nesta democracia à beira mar plantada.

Sobre o autor

Fidélia Pissarra

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