No bairro da Fraternidade, as mãos não conhecem trelas de cães, passeados duas ou três vezes por dia, porque estão ocupadas pelas das crianças. Nos álbuns das memórias fotográficas, do bairro da Fraternidade, não jazem retratos de sucessivos felinos, que se desejam extintos por castração, ainda que magros à custa de rações personalizadas, ou “felinizadas”, para sermos mais exatos, porque estão cheios de noivos e noivas de olhar, militantemente, iludido.
No bairro da Fraternidade, o amianto esquece-se nos telhados, à espera que o vasto céu abençoe a vida de quem lá vive e o entulho amontoa-se nos lotes desertos de intenções. Sobranceiro, mas quase secreto, como se querem as deficiências de paisagem, o bairro tem vergonha de cada uma das suas mazelas. Dá em esconder-se entre o cimo e o fundo do alcatrão que desenha a rua sem saída e sem outro nome, além do próprio nome do bairro. E, contudo, nem a incursão periódica, de quem calcorreia todas as portas a cada quatro anos, embacia o olhar dos que ali vivem sem nada esperar das juras eleitorais feitas a pés juntos e dedos, dissimuladamente, cruzados. Não que seja de propósito, o cruzar dos dedos. Será mais um espasmo de quem, apesar de tudo, teme castigos celestes por não resistir à tentação de reimplantar mais uma rotunda em vez de remover telhados, declaradamente, assassinos. Mas quem diz telhados, diz outras letalidades que tais. Desde a reprodução de ratos que, ao contrário da dos gatos, parece não preocupar ninguém, até à das plantas e insetos do mais nocivo que se possa imaginar, tudo ali se limita a inquietar apenas quem não tem como de lá sair.
Indiferentes ao esplendor das vistas privilegiadas que o lugar lhes oferece e ao role de intenções, boas, de quem os pretende aliciar, os habitantes, em tom mais jocoso do que mendigo, evidencie-se, acabam por não se escusar a este jogo da caça aos votos. Numa conformidade mais representada do que real, acabam por fazer o jeito aos prometedores de ocasião e lá pedem “uma casinha”, como era suposto que fizessem. “Bonita e mais saudável”. Que bem pode ser “um andar num dos prédios lá em baixo, na Estação”. Por esta altura da conversa, o brilho de todos os olhares diz mais do que quaisquer palavras e envergonham os modelos discursivos dos visitantes que, embrulhados nesta alhada, desvairam em concordâncias. Logo replicadas pelo resto da procissão que, incapaz de distinguir entre o que é para apoiar e o que é para repudiar, acrescenta uns sons subtis a cada um dos refrões. Agarradas às saias vizinhas, as crianças mais pequenas dão em impacientar-se e em espetar os deditos nas pernas que as saias escondem, alfinetando as donas que, em tom imperativo, acabam logo ali com a fantasia dos interlocutores. “Não interessa quem ganha, o que interessa é o que, quem ganha, fará por nós!” E, sem mais delongas, que a hora de almoçar era chegada, despacharam o último ato com rebuscada sofisticação: “se vocês ganharem e não fizerem o que estão a prometer, juntamo-nos todos …”
Os invisíveis
“Sobranceiro, mas quase secreto, como se querem as deficiências de paisagem, o bairro tem vergonha de cada uma das suas mazelas.”