Os herdeiros de Pigmalião

Escrito por João Mendes Rosa

(…) entre o “Index Librorum Prohibitorum” da Santa Inquisição e o “Índice Expurgatório” que tem a tua chancela, a diferença não era de monta. São ambos instrumentos de repressão que condeno e abomino.

PorPara a Alexandra Fernandes:

Creio que é tarde demais para desistir de ti. E repara, caro Sebastião José, disponho da tua aquiescência em tutear-te para melhor respeitar o que representas para mim. Além do mais, o ranger de gonzos das portadas setecentistas neste teu palácio, alta madrugada adentro, dá-me confiança suficiente para acreditar que atentas ao que te digo… Acabo de tresler a tua última biografia. Texto que não tinhas maneira de autorizar nem podia ser visado pela tua Real Mesa Censória e – convirás hoje comigo – felizmente que assim é. Bem sei que quando criaste aquele tribunal, em 1768, ambicionavas sobretudo que o mesmo sufocasse as discricionariedades intelectuais do Santo Ofício, mas um novo monstro criou-se-te no berço, confiado a eclesiásticos igualmente obcecados com o livre arbítrio do pensamento – como o nefando e, convenhamos, plenamente inconcebível, João Cosme, vulgo “Cardeal da Cunha”, que colocaste a presidir àquele órgão execrável. Como foi possível, em plena Praça do Comércio, consentires naquele abominável sábado de 6 de Outubro de 1770 – cumprem-se precisamente, hoje, 250 anos! – no qual foram queimadas publicamente obras como o “Dictionaire Philosophique”, de Voltaire? E teres permitido que fólios de Hobbes, Espinosa ou Rosseau tivessem conhecido igual sorte? Na verdade, sejamos sinceros: entre o “Index Librorum Prohibitorum” da Santa Inquisição e o “Índice Expurgatório” que tem a tua chancela, a diferença não era de monta. São ambos instrumentos de repressão que condeno e abomino. Como vês não sou um apaniguado teu, nem seguidista: nunca o fui com ninguém. Ante todos os seres humanos a quem prestei e presto o meu preito de admiração – e são imensos, desde os mais humildes aos mais eminentes – procurei estabelecer parâmetros que não configurem quaisquer sectarismos ou deslumbramentos imbecis. Mas também não me deixo cair no ódio que enceguece as consciências, tantas vezes fruto da inveja que tu experimentaste tão cruamente – e que eu conheço, infelizmente, muito bem. Por isso te admiro no que tens de grandioso e procuro que o teu lado lunar, não me sendo indiferente, também não diminua a grandeza que te enforma. Dizia-te, meu caro Sebastião José, que foi dada à estampa mais uma biografia tua. “De quase nada a quase rei”, da autoria de Pedro Sena-Lino, é sem dúvida uma obra de fôlego, escrita por um poeta (o que é à partida uma vantagem, na minha suspeita opinião) e vale sobretudo pelo carácter compendiador de factos dispersos, pelo cotejo de documentação desconhecida e ainda pelo esclarecedor prefácio de Rui Tavares. Enriquece qualquer biblioteca e as mentes sôfregas de conhecimento histórico – que é o caso do signatário destas linhas. Mas esta crónica não pretende tecer considerações de crítica literária, editorial ou investigativa: apenas serve o propósito de, sem panegíricos ou detracções, salvaguardar, a par da tua consensual aclamação como estadista, e das tuas cada vez mais consensuais imperfeições humanas; a par da criatura dita cruel e despótica, que houve um ser humano que cultivou na intimidade o sublime e o transcendente; a arte e a poesia: projectaste fontes com poetas como frontispício, reproduziste no recorte azulejar um quotidiano que hoje nos é revisitável visualmente: fizeste-nos incessantes passageiros de uma viagem no tempo, proporcionas-nos em cada dia uma expedição ao Olimpo e à mitologia greco-romana, ao investires-nos na herança de Pigmalião para que também nós nos apaixonemos pela estátua de Galateia (com ou sem o cinzel do mestre Machado de Castro) e por todas as galateias que deixaste nos jardins e no palácio e, enfim, onde conseguiram alcançar os teus olhos visionários num tempo arcaísta…
Nenhuma biografia tua deveria ser escrita – sem retirar méritos a quem agora produziu mais uma – sem que o autor estivesse, não ao lado, mas aqui no teu Palácio e pudesse ouvir os teus passos espectrais à boca da manhã ou os murmúrios que os mais desatentos e incréus julgam ser o simples ranger de gonzos das portadas setecentistas…

* Escritor

N.R.: O autor escreve de acordo com a ortografia anterior ao AO/1990

Sobre o autor

João Mendes Rosa

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