1. João Camossa
Abril entrado e é irrecusável o ímpeto da nevrose libertária… Leio finalmente “Inimigos de Salazar”, de Irene Flunser Pimentel (Clube do Autor, 1918). Não obstante reconhecer na obra concitações de fôlego – e se outros méritos não tivesse teríamos de lhe outorgar necessariamente um irrecusável aplauso pelo pendor compilatório alcançado – a mesma perde por omissões de nomes basilares da oposição ao regime salazarista. Se nalguns casos há a lamentar apenas as referências “à vol d’oiseau” a um Vieira de Almeida ou Henrique Barrilaro Ruas, já não se aceita que, por exemplo, António Paulouro não conste do rol de oposicionistas estudados. Sublevam-se-nos, todavia, os ânimos quando constatamos que um silêncio absoluto se abate sobre um João Camossa Saldanha (1926-2007). Camossa foi um dos mais desassombrados combatentes antifascistas e um dos primeiros a desapear o tirano dos tronos ilusórios: precocemente anteviu a esterilidade do regime híbrido, coercivo e perseguidor; possessor de vastíssima cultura, intelectual intranquilo e munido de uma robusta consciência universalista, passou pelas prisões do verdugo das Finanças, foi torturado pela PIDE, participou na Revolta da Sé (1959) e no Golpe de Beja (1961). Há referências cuja luz jamais se extinguirá, pesem embora os mais vis acometimentos. O nome de João Camossa terá sempre um lastro luzentíssimo de liberdade.
2. Rui Chafes
Abril fica marcado pelo inusual diálogo entre Rui Chafes, o seu universo criador e um público que ele convocou expressamente ao redor de “Desenho sem fim – Endless drawing” na Casa da Cerca, em Almada. São desenhos saídos muito a custo do cofre da intimidade do escultor e pensador (e para onde voltarão muito em breve, “exaustos de serem observados”, sem vislumbre de repetência). São traços e ensaios gráficos partilhados como metáfora do Homem frente ao seu contexto ontológico: o tacto sobre as superfícies nervuradas pelo tempo, o cheiro das tintas obtidas das plantas e dos fármacos, o eco dos passos pelos soalhos dos salões palacianos do velho romantismo germânico. Pelas paredes do espaço expositivo perpassa a regra áurea da vida intelectual: “a verdade, a bondade e a beleza” na obtenção da unidade entre as mesmas e da qual resulta a vivência intencional da harmonia. Há depois um ritmo indissociável de uma analogia (assumida) com Karlheinz Stockhausen e o restante, passa por uma linha reflexica sob a égide de vários pensadores alemães: de Goethe a Nietzsche. Chafes é um referencial do nosso tempo; mais do que contemplar a sua obra – escrita e plástica – é mister estudá-la e meditá-la. Há nela uma intranquilidade que permite crer ainda na dimensão do humanismo como instrumento fundamental de libertação ante a eminência do suicídio global: na exposição personalizada pela sua corporação no feminino. Como aquele universalismo contrasta com os horizontes estreitos de quem gere a “res publica” com base no interesse particular e não no bem colectivo (como se lê no Evangelho de Mateus, «quem puder entender, entenda»)…
3. Manuel Alegre
Terra de trovadores já o anotara Eça com a mordacidade que lhe conhecemos, referindo que só no nosso país os vates tinham o dom de ouvir cantar os rouxinóis o ano inteiro… Mas há nomes maiores da trova lusa que – insisto – não podem ser anulados por juízos parcelares face aos valores humanos em presença, dos quais somos devedores de inquestionável tributo. Manuel Alegre está entre eles, pesem embora as particularidades que perfazem meras contingências diluíveis na amplitude do cidadão esclarecido e poeta engenhoso – mau grado a nossa providencial opinião pública tenha sempre à mão o cutelo sacrificial… O município de Foz Côa rendeu-lhe justo peito; digno seja dos maiores louvores. Alegre foi o poeta que cantou “Abril antes de Abril” e será sempre um ícone do poder combativo das palavras que recusam o açaime – seja ele político, moralista ou costumeiro. Ficou bem a estes horizontes do interior acolher a voz grave do poeta que mereceu o Prémio Camões em 2017; foi precisamente esse galardão que o impediu de vir à Guarda nesse mesmo ano, numa homenagem a um amigo comum: João Cutileiro.
Carlos Chaves Monteiro
Não se estranhe que chame a este rol onomástico o novo edil guardense, empossado precisamente em Abril. Suceder a Álvaro Amaro – cujo consulado será sempre identificável (também) com a sua vigorosa personalidade – pode fazer o afã parecer complexo, mas há todo um capital de esperança que recai sobre Chaves Monteiro. Definitivamente a Guarda não pode perder mais tempo e compadecer-se com quesitos dialéticos acessórios (e até desprezíveis) – e os partidários são-no absolutamente no contexto actual. Num momento em que a cidade e a região se preparam para enfrentar uma das provas de fogo, porventura das mais contumazes da sua história recente – a candidatura à capitalidade europeia da Cultura 2027 – é mister congraçarmo-nos em redor do projecto e interesse regional de que o jovem autarca é rosto. A sua intervenção, por ocasião das cerimónias do 25 de Abril, deixam perceber que há uma determinação genuína na assunção dos destinos da edilidade almejando o colectivo e o conectivo. Que Abril lhe traga – e nos traga – gestos de ventura que semeiem – como na trova de Alegre – «canções no vento que passa».
* Escritor