O trabalho é que nos há de matar

Escrito por Fidélia Pissarra

Arrancar o sustento destas terras invernosas e ácidas nunca foi fácil, exigiu sempre muita persistência e, acima de tudo, trabalho. Duro, árduo, infindável e pouco, muito pouco, compensador. Cientes desta realidade, a maioria procurou outros modos de vida, se não para si, pelo menos para os seus. Os que tinham duas oliveiras e uma leira de batatas puderam pagar em géneros a hospedagem dos filhos junto ao liceu. Os que não tinham abalaram à procura de terras mais afáveis, pródigas em francos, marcos, dólares e outras moedas de peso, com que pagariam a educação urbana da descendência. Começava por abalar o pai e, depois de lavrada a situação de emigrante, juntava-se-lhe a mãe, mas a maioria dos filhos quedava-se, entregue a si mesmo, num quarto sobrelotado nas cercanias dos liceus. Numa época em que quanto mais escola se tivesse menos horas se trabalhava, ambicionavam-se mais os diplomas, a patrocinar um D e um R ponto, a anteceder o nome, do que acertar na chave do totobola, sempre mais fugidia e incerta. Estava escrito nos barrocos das serranias que os filhos destes deserdados da geografia não haveriam de ter que cavar de sol a sol. Até porque, a partir de meados do século passado, para trabalhar apenas das nove às cinco, bastava completar o liceu, ou menos, e isso estava ao alcance de qualquer um.

Só que uma coisa leva à outra e, um dia, reparou-se que as nove da manhã começavam, cada vez mais, às oito e as cinco da tarde acabavam às sete. Com a coisa assim baralhada, não houve mais, nem boa do que estudar mais. Aquilo, com a licenciatura, é que ficaria acertado e lá veio o estudo juntar mais trabalho ao que já se fazia. Uma coisa leva à outra e, com o mestrado, é que era. Com o mestrado não só se trabalhava menos, como ainda se ganhava mais. Vai daí, depois de se levar o dia, de sol a sol, a estudar, a trabalhar, a estudar, começa-se tudo de novo. Só que agora a começar antes do sol nascer e a acabar depois de o sol se por. Do engenho e trabalheira que deu conseguir que os filhos, dos aqui nascidos, não precisassem de trabalhar tanto como os antepassados já ninguém se lembra. Nem pode lembrar, porque os químicos já corrigem o ácido das terras, os tratores cavam numa hora o que à enxada levava uma semana, as estufas controlam o clima e os motores se encarregam da rega. Passadas meia dúzia de décadas desde que os primeiros começaram a atravessar, a pé, os Pirenéus em busca do paraíso, tudo se resume à apoquentação de ver promovido o colega a quem a amizade do chefe rendeu mais do que todas as horas que não trabalhou. Obviamente que, para compensar a desfeita de quem se sente vítima, se continuará a estudar e a trabalhar ainda mais horas. A perder, ficam as relações familiares, de amizade e o tempo de descanso. Trocam-se romances por manuais, as horas de sol pela luz do candeeiro de secretária e, ao fim do dia, se houver tempo, passa-se pelo ginásio antes de recolher um hamburger no “drive in”. O mais surpreendente, no meio disto tudo, é que sabemos bem do que nos tolhe a felicidade e nada fazemos.

Sobre o autor

Fidélia Pissarra

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