O teu filho é inapresentável

Escrito por Diogo Cabrita

Entrou em casa de Nanci Lopes para fazer a faculdade. Contrato de um ano com pagamentos e recibos como mandam a lei. Cabelos longos, unhas falsas e estampadas. Lolita é a grande esperança e orgulho da mãe. Não foi peixeira como a avó, vai ser doutora em Coimbra. Menina instruída na escola de Buarcos, depois na secundária da Figueira da Foz, apaparicada como as princesas, liberta das ajudas da lide quotidiana, birrenta como todas as mimadas. Lolita conheceu Nanci sem nunca ter lido um jornal, nunca ter votado, nunca ter distinguido estética e ética. Lolita nunca escreveu uma carta, nunca pediu um documento, nunca foi ao médico sem a mãe. A roupa estava sempre arrumada, a água dentro das garrafas, as casas de banho limpas. Para Lolita as camas tinham um mecanismo que as arrumava, os pratos lavavam-se sós, a casa de banho não tinha horários, não existia mais ninguém além dela. Nanci disse várias vezes que os cabelos tinham de se erguer e caminhar para saírem dos ralos. Nanci explicou que a piaçaba escondia as misérias da sanita depois do uso. Nanci lá lhe ensinou como e onde ficava a louça de casa. Ainda foi com Nanci que Lolita descobriu que o lixo saia dos baldes pela mão de alguém e que não tinha pernas próprias até chegar ao contentor. O lixo era como um bebé que se leva ao colo. Nanci terminou quando Lolita deixou as unhas no sofá. Depois encontrou a banheira suja e os íntimos da moça junto ao secador. Lolita foi despejada nessa tarde. A mãe disse que não. O pai ouviu e corou. A mãe disse que era impossível. O pai ouviu e defendeu a honra. A mãe negava tudo. Lolita que ouvia no carro com a janela aberta sorria. O percurso da futura doutora foram mais três casas no primeiro ano e por fim um apartamento com colegas. Num lugar gritou com os senhorios. Noutro abusou da paciência dos vizinhos. Liberalizou a linguagem. A doutora ia-se construindo como um bezerro com livros. A mãe disse que sim quando pagou a primeira renda completa. Ninguém mais. Oh Lolita parece que ninguém te atura. A culpa é minha! A mãe chorou, o pai pagou. Não temos dinheiro para te ter sozinha em Coimbra, minha filha. A deselegância formar-se-ia em viagens de comboio.

Sobre o autor

Diogo Cabrita

Leave a Reply