O silêncio rasgado

Escrito por Diogo Cabrita

“O que testemunhei nos hospitais durante a crise de 20/21 é uma das facetas mais tristes da menoridade humana e daquilo que o medo expresso nas redes de informação catapulta.”

A ti que estiveste internado nos serviços de saúde durante a tal crise de 2020 a 2021, abre a porta do silêncio e conta-lhes o que viveste. Cidadão com teste na narina positivo era internado numa cama, num quarto de um ou vários, janelas fechadas e penico alto debaixo da cama. Preso na habitação fechada, sem renovação de ar com o penico pertinho da mesa da comida, confundindo cheiros. Vinham pessoas impossíveis de identificar, vinham técnicos completamente limitados por roupas de proteção e ajudavam a higiene, despejavam os penicos e traziam comidas. A medicação decorria nas mesmas condições.
Não pode sair! Não pode abrir a janela! Deite-se! O musgo acumulava-se nos tetos e o mau cheiro crescia. A doença nuns progredia de modo inexorável para um fim trágico e noutros havia um despertar. A liberdade dependia do cotonete na narina. A progressão da doença assustava os técnicos que viviam em pânico de ir para um daqueles insalubres lugares. O susto era produto da informação externa aos hospitais, veiculada por alarmistas médicos, alucinados matemáticos que previam o apocalipse. Assustados iam para casa e dela voltavam. Os meses passavam e os cenários eram iguais, cada vez mais simples, mais previsíveis, com mais gente que fora infetada e regressava sã. A larga maioria das pessoas contraia a doença e melhorava. Havia uma recomendação de fechar-se em casa uns dias e depois, apesar do que se diz nos livros, regressava imune, carregava medo igual, e protegia-se do mesmo modo. Um tempo de fazer pela ignorância do medo, sem ousar acreditar numa vírgula que fosse do que se escrevera até hoje. Assim fecharam-se milhares de pessoas, incomunicáveis permaneceram durante anos alguns idosos, converteram-se lugares de escrutínio da vontade e da opção livre, em casernas militares e presídios obrigatórios. Os filhos arrasados de receio fugiam dos pais. A mim perturba-me imenso aqueles encerramentos de jovens e idosos no sanatório dos Covões durante semanas, como se estivéssemos nas trevas da lepra, no pior tempo da SIDA, no maior obscurantismo da idade média. Se tivessem morrido 7% das pessoas que contraiam a doença (faleceram menos de 0,9 e sobretudo os muito doentes, ou idosos em fim de vida e, como em tudo na vida, raras exceções) tínhamos voltado à mais negra das noites. Tinham-se matado vizinhos, tinham-se libertado as feras dentro de nós, pessoas viravam bestas – se é que alguns não viraram. O que testemunhei nos hospitais durante a crise de 20/21 é uma das facetas mais tristes da menoridade humana e daquilo que o medo expresso nas redes de informação catapulta.

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Diogo Cabrita

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