O prazer de comprar

Escrito por Joaquim Igreja

A estética invadiu a nossa vida de modo avassalador nos últimos 50 anos. Ao nível pessoal, os cuidados de beleza, os produtos dietéticos, a prática desportiva, a compra de vestuário, a organização das férias, confluem hoje e dão corpo a um conjunto de princípios de vida que, embora às vezes com sinais contraditórios, apontam todos na direção do reforço das tendências individualistas e de realização pessoal. Nestes diversos campos, ao contrário de há algumas décadas atrás, já não é a distinção social que é procurada ao comprar, por exemplo, uma roupa, antes a afirmação de cada um, muitas vezes em sentido semelhante ao dos outros mas sempre numa lógica de realização e prazer pessoal na procura da melhor construção de si próprio. Gilles Lipovestsky e Jean Serroy, em “O capitalismo estético na era da globalização”, chamam a este espécime o homo aestheticus, interpretando-o como uma forma de realização do capitalismo numa fase em que ele se tornou «artístico», realizando o objetivo do consumo através do aperfeiçoamento do produto pela arte.
E se isto acontece assim ao nível da aparência física, o mesmo acontece quando pensamos no fenómeno do lazer, em que a realização se concretiza numa forma de individualismo ainda mais desmultiplicadora. Basta pensar no mundo da música, do cinema, da televisão e da internet para vermos aquilo em que o nosso mundo se tornou na procura do mais belo, do mais divertido. O consumidor tornou-se hiperconsumidor, cada um constrói os seus gostos, tem orgulho nas suas diferenças e interessa-lhe apenas aquilo que corresponde à sua construção. São várias horas por dia gastas a ver ficção ou a ouvir melodias com as quais nos identificamos. É o homem que não pode senão ceder às emoções, que tem que consumir simbolicamente não sei quantos produtos destes por dia, o homo emotivus. Quanto ao turismo, em nome das emoções conseguidas, ele ameaça tornar-se à escala planetária um modo de vida insidioso e flagrantemente em confronto com a vida comunitária instalada. Já o está a ser em alguns locais, outros estão a tornar-se destinos pouco atrativos devido à procura turística excessiva. Por outro lado, na mesma onda, as cidades vivem numa disputa constante por tornar acolhedores os seus espaços, a pressão do turismo leva a transformar espaços que não reconhecemos uma dúzia de anos depois da última visita, as manifestações culturais (mais ou menos copiadas) sucedem-se e tentam criar uma marca, trazer turistas. Algumas cidades “musealizam” o espaço público, outras jogam no verde e na mobilidade, outras limitam-se a eventos, desistindo de transformar o que é difícil de melhorar. Todas querem por outro lado centros comerciais arquitetonicamente inovadores, com espaços imponentes, lojas com design “diferente”, minicidades dentro da cidade para que os locais não saiam e os turistas venham.
A verdade é que o capitalismo a partir da arte tem os seus dilemas em que os humanos já se debatem e que não permitem até agora contestar o caminho de hiperconsumidores em que nos tornámos. Por exemplo, a realidade ecológica e de sustentabilidade do planeta é dramática, não é? Diante das alterações climáticas, os mais radicais chegam a defender um regresso às “fontes”, ao “equilíbrio”, ao respeito total pela natureza, com as comunicações a ser asseguradas de maneira sustentável. Tem isso condições para avançar? Pode o consumidor renunciar às viagens de avião, à rotina do automóvel, à escravatura do ecrã? Não nas próximas décadas, talvez nunca. Vemos os ecologistas a promover manifestações contra a exploração do petróleo e do lítio em Portugal, amaldiçoando a produção industrial. Mas seriam eles capazes de renunciar àquilo que estes produtos permitem fazer? Deste modo parece apenas um esbracejar sem sentido.
Outra área em que grandes dilemas se põem é a medicalização da vida corrente: vivemos quase todos à base de medicamentos ou suplementos vitamínicos, ansiolíticos e narcóticos para dormir são quase obrigação, uma forte indústria de adereços ligados às preocupações de saúde implantou-se e um caminho para uma vida saudável sem estes produtos é quase impossível, até porque se criaram interesses e uma propaganda convincente à volta deste comércio. Etc., etc.
Lipovetsky e Serroy dizem que deitar abaixo o sistema é impossível: o capitalismo construiu-se à volta do bem-estar, da beleza e da emoção e está de pedra e cal com mais ou menos solavanco ou ajuste. Por outro lado, dizem eles, o consumo é aquilo que, num mundo onde se acentua o isolamento, permite «combater uma certa fossilização do quotidiano através das pequenas excitações e mini-festas da compra», reavivando «a experiência do tempo através das novidades que lhe trazem o gosto da aventura». Uma nova cultura da frugalidade e o fim da febre de comprar são apenas um mito. Cada um de nós está condenado a ser um homo consumericus.
(Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, “O capitalismo estético na era da globalização”, Ed. 70, 2014)

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Joaquim Igreja

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