O Natal do nosso descontentamento

Escrito por Fidélia Pissarra

«Não os tinha a eles, mas lá ia vivendo com as lembranças deles»

Dos Natais da sua infância, passada na penumbra das frias noites beirãs, guardou a memória da mãe e da avó à volta das filhós junto à lareira. Dos Natais da sua juventude, passada num dos bairros periféricos de Paris, guardou as saudades que sentia desses tempos de infância. Depois, vieram outros natais que a fizeram esquecê-los, porque na azáfama das viagens, para vir passar o Natal à terra, a mais, apenas cabia a escolha das prendas dos filhos logo seguida da dos netos. Ano após ano, enfrentou a neve que nunca em cuidados se aproximou daqueles em que as crianças, entaladas por embrulhos e bagagem no banco de trás do automóvel, a traziam. Se tinham frio, fome, sono. Não, não e não, respondiam os três garotos e meio por entre a excitação do “ainda falta muito para chegar”? Por altura de serem quatro garotos completos, já as avós de todos tinham partido e decidiram deixar de vir “só para passar o Natal”.

Chegados a adultos, nenhum dos quatro se lembrava sequer das viagens que fizeram entalados pelas prendas que o menino Jesus lhes havia de deixar, no sapatinho junto à lareira, no dia de Natal, quanto mais do sabor das filhós.

Um a um, todos acabaram por trocar as festas natalícias em família por viagens ao hemisfério Sul de onde gostavam de lhe trazer alpargatas havaianas. Assim, sempre se lembrava deles durante os seus verões algarvios, diziam. Do mal, o menos, pensava. Não os tinha a eles, mas lá ia vivendo com as lembranças deles. Depois de o marido partir, deu por si a comer o bacalhau do Natal sozinha, a aproveitar o Time-sharing sozinha e a sozinha embarcar nos aviões que a levam e trazem de um lado para o outro sem grandes dramas ou questões de existência. Não que isso não lhe doesse, uma pessoa é que acaba sempre por se habituar à solidão. Coisa de que agora, por causa da pandemia, já não se pode queixar. No último agosto, viu a sua vida transformar-se num corrupio. Filhos, netos e namorados deles todos, atafulharam-lhe o pequeno apartamento em Vale de Lobo com a mesma voragem com que lhe esvaziavam o frigorífico. Agora, como se isso fosse pouco no disfarçar de tanta ausência, decidiram entrarem-lhe, de uma assentada, casa da aldeia adentro. Não que seja caso para se queixar, pelo contrário. O medo do vírus, de que algum deles a possa contagiar, é que não a larga. Ao fim e ao cabo, comer o bacalhau da praxe juntos nunca foi tradição nesta família aumentada.

Ao ver tanto parente junto, arrumou as malas e saiu decidida a embarcar num qualquer avião rumo a Paris. No dia a seguir, talvez logo depois de se darem conta de que não estava no seu quarto da remodelada velha casa da aldeia, pareceu-lhe ouvi-los queixarem-se na rádio. Não percebeu bem o que diziam, nem podia jurar que eram mesmo eles, mas lá que parecia dizerem as mesmas coisas que lhes ouvira no dia anterior e da mesma maneira, parecia. O que, mais do que ter saudades ou fazerem-na sentir só, a fizeram indignar-se: então, depois de velha é que a faziam andar a fugir deles? E agora? Quem é que lhe havia de trazer as havaianas para calçar no próximo verão? Filhós que ela fizesse é que, tão cedo, não haviam de comer. Pegou na farinha, contou os ovos, mediu o azeite e sorriu ao voltar a lembrar-se dos Natais da sua infância. Pena? Só por não ter uma lareira ali à mão, mas antes assim.

Sobre o autor

Fidélia Pissarra

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