Estou quase sempre em desacordo com os adágios ou epítetos que procuram fazer a síntese da psicologia colectiva do povo português: “país de poetas?” – quanta injustiça cabe na expressão; país de vates, de trovadores e cantantes que vibram na medida velha do verso a alma da terra e do mar, nas joviais sílabas em redondilha fresca e espontânea. Poetas há poucos. Na sua larga maioria sem saber que o são. O desforço do poeta reside, todavia, no silêncio: o rouxinol cala-se quando o estorninho alardeia a sua lira. “País de brandos costumes” – também não. O apodo interessava a Salazar que o pronunciou em 1937, após o atentado à bomba perpetrado por anarquistas, na Barbosa du Bocage – onde tantas vezes rumei na companhia de João Camossa (– «Aqui quase que se escreveu uma página gloriosa da portugalidade!» – dizia sempre, rindo). “Brandos costumes?” A expressão de Salazar esmagava com o tacão da bota episódios que contrariavam a inverosímil classificação. Como a chacina dos Távoras, a guerra civil de 1832-34, o encerramento dos conventos (Herculano dizia que havia monjas a «morrer à fome»); o regicídio, a morte de Sidónio, as bombas da Carbonária, a “Noite Sangrenta”, as prisões nas casamatas da Torre de S. Julião da Barra – «Impróprias para cães quanto mais para homens» – Vasconcellos Porto, dixit. E também as porvindouras repressões: as torturas dos presos políticos; Peniche, Caxias, o Aljube e Tarrafal; a bufaria, o medo, as perseguições arbitrárias. Sim, porque, por muito que nos custe admitir, Portugal aceitou quase massivamente o jugo fascista e tudo o que fosse desalinhado, vai de delatar o atrevimento ao malsinado regedor do concelho, uma mimese de salazarinho que às vezes chegava a ser mais discricionária do que o próprio celibatário de Santa Comba. O país comprazia-se no retrato idílico narrado a Cristine Garnier e o subsolo escondia a putrefacção das ossadas que esse idílio vitimou.
“País de extremos” – isso sim. Seja por excesso ou por defeito, Portugal cultiva até ao fanatismo as suas convicções ou antipatias. Face à novidade, o português primeiro resiste, depois entrega-se tão devotamente à inovação que passa a depender dela e em breve se torna adicto da mesma. Daí os extremos. Dizer que o Eusébio não pode ser um símbolo nacional é um sacrilégio. Nem um só deputado, no momento da votação na Assembleia da República, em 2015, se atreveu a objectar a sua ida para o Panteão Nacional porque temiam a reacção dos eusebianos extremistas. Não se gerou nenhuma corrente de discussão pública sobre o assunto porque Eusébio da Silva Ferreira era proverbialmente “panteável” e configurava “o sim porque sim” – num argumentário visceralmente português…
Eça explicou Portugal, sobretudo a partir da tipologia de classe, governantes e políticos, usurpadores e farsantes, molestadores de Ameliazinhas e também pelas fraldas e nódoas, «país de castas e tribos» afinal. As modas foram, são e serão, neste rectângulo, um evangelho de vida: um carneirismo inexorável obriga à massificação do figurino português que perfaz, ciclicamente, como diria o autor d’Os Maias a «galeria de tipos lusitanos». Nesse tempo o francesismo estava na moda e o jacobino “bœuf à la mode” abafou a vitela cozida dos nossos avós e outras coisas. Quem não usasse palavras como “chique” ou croissant; ou croquete, maionese, menu, omelete, patê, petit gâteau: estava condenado ao estatuto de labreguice. Os galicismos entraram paulatinamente no léxico português e é impensável convidar hoje em dia um amigo para degustar um “pequeno bolinho com gelado”. Em consciência já ninguém se preocupa – nisso os espanhóis são mais ciosos do seu património linguístico – em encontrar terminologias ajustando semântica e identidade vocabular portuguesas.
Mas centremo-nos nos extremos. Além do pobre linguajar que triunfalmente se instalou – o okay substituiu sem dramas o “compreendo”, “sim, senhor” ou “de acordo, obrigado” – afunilou-se na vertigem informática toda a praxis relacional. A correspondência virtual (que nós chamamos e-mails e os espanhóis dizem, invariavelmente “correo electrónico”) veio substituir as cartas domiciliárias, com todas os méritos e deméritos de tal prática. Nada contra. A não ser quando esta conduz a comportamentos que negam a natureza e os valores humanos mais elementares. E são uma verdadeira praga, na verdade. Há dias reuni presencialmente (convém precisar!) com alguém numa proveitosa jornada de trabalho. Trocámos ideias, que anotámos em simultâneo. Acertamos datas das realizações, fechámos o programa. Estava tudo tramitado. Assinámos e datámos o documento. No final, o meu interlocutor, rematou: – “Agradecia que me enviasse depois um mailzinho só para confirmar tudo”… Confirmar o quê? – pensei. Esta preponderância do mundo virtual sobre o real desumaniza-nos e é irritante não sabermos discernir entre o utilitário e a massificação modal. Querem-nos robots a todo o custo…
João Mendes Rosa
Escritor
O autor escreve de acordo com a ortografia anterior ao AO/1990