O ideólogo idealista idiota

«Liguei à linha de apoio Saúde 24 e comuniquei que tinha uma ideia. “Não podemos fazer nada, mas pelo menos não é Covid. Ainda assim, pelo sim, pelo não, mantenha-se em isolamento. Pode ser uma ideia contagiante.»

Esta semana acordei com uma ideia. Sendo facto pouco habitual, senti-me cansado. Mas por essa mesma razão, pareceu-me ser uma ideia extraordinária. Perguntei-lhe se era uma ideia para o país. Respondeu-me, “vai mamar!”. Percebi que era uma ideia parva.
– És uma ideia de negócios?
– Só se pagares tu os impostos.
– És uma ideia para a minha crónica?
– Deves pensar que és o Lobo Antunes.
– És uma ideia de futuro?
– Nem que tu fosses o Exterminador.
Era uma ideia desconcertante. Mas como saber se era boa ou má ideia? Levei-a ao médico, que me avisou, “olhe que é uma ideia perigosa”. Dali, fui trabalhar. À cautela, tapei-a com uma manta, para ninguém dar conta que eu andava por aí com uma ideia.
Na aula questionei se alguém sabia o que fazer quando se acordava com uma ideia nova. Obtive apenas duas respostas: “ninguém tem ideia” e “é esperar que passe.” Mas esta ideia não se ia embora, era uma ideia fixa.
Liguei à linha de apoio Saúde 24 e comuniquei que tinha uma ideia. “Não podemos fazer nada, mas pelo menos não é Covid. Ainda assim, pelo sim, pelo não, mantenha-se em isolamento. Pode ser uma ideia contagiante.”
Falei com amigos. “Tu tens cada ideia”, disseram. “Tens de tratar disso. Enquanto andares com ideias na cabeça, não consegues fazer nada.”
Em desespero, supus que pudesse estar possuído. Mas um exorcista experimentado acalmou-me, “não, caro amigo, há ideias que não lembram ao Diabo.” Podia não ser uma ideia demoníaca, mas era uma ideia do camandro.
Tentei usar a ideia para cozinhar, para escrever, para seduzir. Não funcionou, era uma ideia teórica. Mas não era uma ideia de razão, que eu sou vagaroso, mas não aprecio Kant alentejano.
Fui dormir. No dia seguinte, logo veria como se lida com uma ideia. Quando acordei, estava sem ideias. Felizmente, fora apenas uma ideia passageira.

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Nuno Amaral Jerónimo

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