O homem do saco, o da areia e o do natal

Escrito por Fidélia Pissarra

Pasmada, a olhar para a “obra”, dou por mim a lembrar-me de que sempre houve crianças a querer viver tanto e tão depressa que, na hora de dormir, fazem de tudo para não se deixarem adormecer. Claro que, de tão cansados, os olhos acabam a picar-lhes como se alguém lhos salpicasse com areia e não têm mais nem boa do que fechá-los para acalmar o incómodo. Depois, por ainda serem crianças, nem sequer sonham que os pais costumam recorrer a uns homens para os ajudar a vencer-lhes a teimosia disparatada e um ou outro asneirar. Estes homens costumavam ser, como muitos ainda se lembrarão, o do saco para o asneirar e o da areia para o adormecer. Mais tarde, houve quem arranjasse o homem das barbas para festejar, mas sempre desconfiei que esse foi mais para desfazer o que os outros dois, eventualmente, conseguissem. Seria suposto que aprendêssemos a nadar na linha entalados entre ameaças destas e promessas de recompensas natalícias. Depois de lembrar isto tudo até me passou um pouco da perplexidade ao olhar de novo para a “obra”. É que, ao fim e ao cabo, somos apenas os adultos dessas crianças que sempre se deixaram alinhar pelas histórias que alguém lhes contava. Umas vezes de carochinha, outras de homens maus, nunca nos faltaram razões para desconfiar de todas estas histórias de embalar e enganar, mas há que acreditar em algo para não desanimarmos.
Pronto, ali e na hora, arranjei uma explicação para esta nossa mania de só eleger pais natais e recusar homens do saco e da areia. Quem é que gosta de se imaginar a ser levado para longe, com um selo na testa, a tiracolo de um qualquer revisor de comboio ou a ter de sofrer picadas nos olhos para dormir? Ninguém. Por outro lado, quem é que não gosta de receber umas prendas mesmo que fúteis e inúteis? Pouco importa onde vão os pais natais buscar o dinheiro para as muitas inaugurações com que enfeitam os discursos que, de tão pobres e repetidos, têm de ser disfarçados com croquetes, microfones e promessas. Geralmente, promessas de nos colorir a vida com as cores do paraíso e isso tem bastado para que votemos neles. É que nem nos temos dado ao trabalho de pensar se as promessas, “cumpridas” ou a “cumprir”, são as de inaugurar escolas sem alunos, hospitais sem médicos, piscinas sem água, estradas sem trânsito, empresas sem clientes ou casas mortuárias sem defuntos. A promessa em si e o cumprimento da mesma tem-nos sempre bastado. O que significa que, no fundo, no fundo somos os únicos donos do nosso destino. E, se não o formos, há sempre a possibilidade de passados quatro anos arranjarmos alguém capaz de nos vir prometer fechar aquilo tudo para controlar o desperdício de dinheiro atirado ao betão, à gravilha, aos croquetes e discursos de rotunda. Obviamente que, nessa altura, todos se insurgirão contra tão sorumbática avareza. Se fosse o Freud, seria capaz de afirmar que a culpa de tanta bipolaridade só pode ser dos homens que os nossos pais inventaram para nos educar.
Como não sou, acho que a culpa é da escassez dos dois dedos de testa com que todos deveríamos ter nascido. Acabo a virar costas à “obra”, abalando a perguntar-me se, às vezes, não nos ficaria mais barato transportar de helicóptero algumas meias dúzias de alunos, doentes e afins.

Sobre o autor

Fidélia Pissarra

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