O Evangelho segundo Borges

Escrito por João Mendes Rosa

Nado e criado num mundo de certezas – em que a dúvida, qualquer dúvida, que desdissesse dos cânones definidores de um existencialismo fideísta tido por inabalável era obra de forças perversas – o tecer dos dias vindouros foi acontecendo paulatinamente em direção ao indefinido. E hoje, a dúvida – qualquer dúvida – é apenas a infinitésima parte dulcíssima desse infinito incomensurável que rege os meus dias de meditação e desordenação da lógica mesquinha do tempo que se esvai implacavelmente nessa ampulheta atroz e medonha que a vida tende a tornar-se se não interferirmos nela com destemor. Descreio convictamente no devir recompensado da existência terreal e a minha metafísica centra-se e redefine-se incessantemente segundo este verso de Borges: «Sedento de saber o que Deus sabe». Saberá “Ele” que na perturbada penumbra dos turíbulos as formas esvaidas da fé padronizada buscam avidamente o elemento desordenador do mundo para com ele redescobrirem a transcendência? Saberá que as feições clássicas da bondade, beleza e sabedoria sobreviveram a todas as tentativas de aniquilamento e constituem hoje a trindade salvífica de uma humanidade, essa humanidade que busca um redentor há três milhões de anos – e que Adão foi a tentativa fracassada mais arcaica, mas a mais ousada também – de libertação da escravidão dos ‘hominini’ do equilíbrio subserviente do desconhecimento e da mortalidade personalizada naquela voz que eclode sempre do alto, que sentencia e impõe, capaz de todas as infâmias trasvestidas de benquerença mas que nenhum proveito nos trouxe a nós – cativos do género humanoide – que adiamos sucessivamente essa divindade que existe em potência em nós, como nos ensinou depois Homero… Saberá?
Mais razoável me parece o pensamento atinente a buscar uma emancipação pessoal de todo o ferrete idolátrico – assuma ele a forma que assumir – a libertação do jugo moralista ou determinista para que nos tornemos de uma vez por todas genuína e verdadeiramente livres, procurando depurar a nossa existência (matéria + pensamento) face à relação com o mundo. Espinosa demonstrou que a vida é uma sucessão de encontros e saber viver e reside em muito nessa capacidade de escolher esses encontros e de rejeitar outros. Quando um encontro é bem-sucedido, a “potência” entumece-se e acontece a satisfação pessoal que pode ser mais ou menos determinante. Todavia, se acontece o contrário, a nossa potência definha-se e remete-nos para estádios de conflito interior. O nosso corpo tende a buscar esse encontro ideal, não por identificação ou acomodamento, mas de aspiração aos estádios mais elevados de convencimento, a que o autor da “Ética” designou de “Conatus” – que não é mais do que aumentar a potência de existir e, assim, aspirar à própria divindade. Mas ante a complexidade que pressupõe a libertação dos homens do peso do elemento opressor, do negativismo, dos moralismos e afetos acidentais, eclodidos do mundo exterior e torná-los verdadeiramente livres; apenas um instrumento dispomos: a razão. Daí que seja imperioso – pelo menos para os que querem participar da divindade – viver fazendo uso de uma consciência crítica que nos torne invulneráveis ás contingências das coisas contingentes e acessórias. Não podemos abdicar da nossa dimensão impulsionadora do rumo irrecusável do “Bem” – não porque aspiremos a uma recompensa caritativa de além-túmulo, mas porque refletir sobre a vida e ter dela uma ideia divinizadora é a melhor das gratificações. E embora subscreva (historicamente) aquele pensamento de Arthur Schopenhauer, segundo o qual «toda a sociedade que não for iluminada pelos filósofos é enganada pelos charlatães» – eu prefiro a ação emancipadora dos poetas. Porque se reconhecemos nos poetas a capacidade de nos suscitarem dúvidas – as dúvidas com que começámos este texto – os poetas projetam-nos para um sentido para-existencial onde a razão se encontra no seu estado mais puro; incorruptível e obstinada, tende a construir o homem propositadamente inconcluso, deixado livremente ante uma miríade de possibilidades por conjugar. Daí que Borges dissesse que sempre imaginou o paraíso como uma biblioteca. E cheio de dúvidas e incertezas metafísicas pervago neste momento o meu olhar na amplitude espacial desta biblioteca, enquanto redijo estas linhas, acirrando mais e mais e mais incertezas e dúvidas.

* Escritor

Sobre o autor

João Mendes Rosa

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