O escrutínio público

«saber com quem andamos é um exercício dificil, por vezes até injusto, mas o único que nos garante liberdade e equidistância de interesses e promiscuidades»

A afirmação de Goethe, «diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és», que tantas vezes ouvimos, resume o estado da república. Muito a propósito, Goethe ainda acrescenta um segundo silogismo: «Saiba eu com que te ocupas, e saberei também no que te poderás tornar».
A operação “Cartão Vermelho” e as consequências da detenção do presidente do Benfica parecem dizer respeito ao clube, ao futebol e à “familia” benfiquista, mas na verdade são a conclusão (mais uma) do estado a que chegámos enquanto país. Os resquícios da governação de José Sócrates, o mundo de Ricardo Salgado, as relações promíscuas entre poderes, o amiguismo e os esquemas que minam o sistema em que vivemos, poêm em causa o regime democrático que tanto custou a conquistar. Por isso, devemos pensar nas palavras de Goethe e defender o maior escrutinio, a independência da Justiça e exigir a maior transparência de todos os atos e negócios públicos.
Para a gestão dos dinheiros do PRR, tantas vezes expressivamente designado de “bazuca”, o governo avançou com a instalação do Banco de Fomento. E indigitou Vítor Fernandes para a sua liderança. Sabe-se agora que é alegadamente amigo e terá ajudado Luís Filipe Vieira a pagar o mínimo possível para comprar uma dívida pessoal de 54,3 milhões ao Novo Banco, de que era administrador. O gestor, que antes esteve na administração da Caixa, num tempo que custou muito caro à instituição e ao Estado, foi estranhamente o escolhido para gerir os milhões de que o país tanto precisa para recuperar da crise. Com atraso, o Banco de Portugal retirou-lhe a idoneidade. É o minimo – um gestor assim não merece confiança e não pode meter as mãos na massa…
As amizades, os conluios, os esquemas entre poderes custaram milhões ao erário público. A forma fácil como os diferentes poderes se relacionam entre si destruíram a riqueza gerada e conduziram a um retrocesso irrecuperável. Portugal está hoje na cauda da Europa porque a corrupção e o regabofe têm minado as reformas e impedido o país de se aproximar dos níveis de desenvolvimento europeus. Muito para além dos projetos e medidas de coesão e desenvolvimento estão os homens que lideram e muitas vezes são promíscuos e estão disponíveis para sugar a energia do país de forma inimputável.
Neste momento em que nos preparamos para assistir a mais uma campanha eleitoral devemos estar atentos e vigilantes e perguntar-nos de onde vem o dinheiro para gastar em propaganda, quem paga e como paga o material de promoção das candidaturas. Normalmente ninguém liga. Parece-nos normal que tanto dinheiro se esbanje em cartazes, folhetos e marketing digital (a forma mais discreta e de maior crescimento: os candidatos gastam milhões em aplicações e redes sociais, para aparecerem discretamente, digitalmente, sem nos darmos por isso, em todos os momentos do nosso dia a dia). As contas são apresentadas formalmente, mas, muito para além dos números oficiais, os “apoios” passam ao lado do crivo oficial e é muito fácil patrocinar campanhas sem ninguém ver como e porquê. Por isso, todos, devemos refletir nas palavras de Goethe para depois não ficarmos surpreendidos. Podemos simplesmente recordar que António Costa foi apoiante de Vieira nas últimas eleições do Benfica; ou pensar nas negociatas que passaram debaixo dos nossos olhos nas diferentes administrações públicas ou nas autarquias – saber com quem andamos é um exercício dificil, por vezes até injusto, mas o único que nos garante liberdade e equidistância de interesses e promiscuidades. O escrutínio é responsabilidade de todos.

Sobre o autor

Luís Baptista-Martins

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